Um ousado romance sobre o nazismo, escrito
em francês por um autor de origem americana
Moacyr Scliar
Catherine Helie/Gallimard/OPAL |
Littell: do ativismo humanitário à exploração do mal |
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Com mais de 150 000 exemplares vendidos na França e agraciado com o Prêmio Goncourt, As Benevolentes (tradução de André Telles; Objetiva/Alfaguara; 912 páginas; 79,90 reais), de Jonathan Littell, talvez assuste pela extensão. A narrativa ocupa 896 páginas, complementadas por um glossário e uma tabela de equivalência de patentes militares, na qual se aprende que o pomposo SS-Rottenführer do Exército nazista corresponde a cabo. Mas o leitor que não desanimar com o tamanho viverá uma aventura literária rara. O livro é uma ousada reflexão sobre a natureza do mal, conduzida por um refinado conhecedor do tema: o narrador é Maximilien Aue, um fictício oficial das SS nazistas.
As Benevolentes – cujo título remete a uma tragédia clássica de Ésquilo – foi escrito em francês, mas o autor é americano de nascimento. Relativamente jovem (completa 40 anos em outubro), Littell é um andarilho: nasceu em Nova York, adquiriu cidadania francesa e atualmente mora em Barcelona. Durante muito tempo, exerceu trabalho humanitário em regiões de conflito como a Bósnia, a Chechênia e o Afeganistão. Por que um ativista humanitário judeu tentaria se meter na pele de um oficial nazista de alta patente? A intenção de Littell foi justamente essa: desvendar o que significa ser um monstro moral. Nesse esforço, juntou um vasto suporte documental, mas a narrativa é tão envolvente que o leitor quase não percebe a pesquisa.
O livro é dividido em sete partes, todas com nomes musicais, uma alusão à paixão dos nazistas pela música clássica. Títulos como "Toccata" ou "Sarabande" balizam a trajetória de Aue no campo de batalha, num cargo burocrático no gabinete de Heinrich Himmler – um dos arquitetos da "solução final", o extermínio dos judeus – e, depois da guerra, na França. Além de Himmler, muitos personagens reais da galeria nazista figuram na narrativa: Adolf Hitler, Adolf Eichmann, Albert Speer, Rudolf Hess. Os nazistas com quem Aue conversa vão do intelectual refinado ao carrasco brutal. O forte do livro são esses diálogos inteligentes, às vezes até inteligentes demais, mas sempre vívidos.
Time & Life Pictures/Getty Images |
Himmler: um dos personagens na galeria nazista de As Benevolentes |
Filho de um pai alemão que abandonou a família e a mãe francesa, Aue é um homem culto. É também um bissexual que tem vários casos durante a narrativa. Em meio a monstruosidades sem conta, Aue faz questão de se distanciar da barbárie. "Não pedi para me tornar um assassino; se pudesse escolher, optaria pela literatura", diz. Aqui temos um motivo de críticas ao romance de Littell, semelhantes às que foram feitas contra o livro de Hannah Arendt sobre o julgamento de Eichmann, no qual ela fala na "banalidade do mal". Essa "banalidade" poderia ser uma desculpa para o crime. Afinal, como Eichmann várias vezes declarou, estava apenas cumprindo ordens: era portanto um funcionário obediente, não um monstro. Littell sugere repetidamente que os nazistas não eram uma exceção. No extermínio de judeus, por exemplo, tinham a decidida colaboração de ucranianos. Ou seja: a humanidade tem dentro de si um componente de intolerância, de loucura mesmo, que pode ser mobilizado com resultados catastróficos. A tese é talvez controversa. Mas Littell a defende com brilho desde as primeiras páginas do livro, quando Aue anuncia como será sua narrativa: "É bem verdade que se trata de uma história sombria, mas também edificante, um verdadeiro conto moral, garanto a vocês".