O Globo |
11/9/2007 |
A votação secreta sobre Renan vai ser um dia histórico Eagora? Que acontecerá com o Senado, se a votação de amanhã absolver o presidente Renan Calheiros, em sessão secreta, voto secreto, contra a decisão do Conselho de Ética que pede sua cassação, contra todas a evidências de delitos comprovadas? O Senado brasileiro nasceu com raízes na tradição greco-romana, inspirado na Câmara dos Lordes da Grã-Bretanha e influenciado pela doutrina francesa da divisão e harmonia dos poderes do Estado e dos direitos dos cidadãos. Aqui, foi criado pela Constituição de 1824. Quarta feira, haverá uma mudança histórica neste país. Para o bem ou para o mal. Para frente ou para trás. Podemos acordar em 1823. Podemos olhar pela janela e ver meirinhos e mucamas, sinhás-moças em berlindas e carruagens com negrinhos de libré e cabeleira empoada no estribo. Ou então, se Deus ajudar, podemos progredir, se os senadores imitarem a súbita grandeza que o STF nos ofertou, liderada por um brilhante bisneto de escravos. Mas... e se Renan for absolvido? Significa que nada de real aconteceu? Que estávamos todos loucos há três meses? Foi tudo um sonho? Aliás, não se trata mais de punir Renan. Isso é o menor lado da questão. Trata-se de o Senado se defender como instituição. É o Senado que está em julgamento. É importante que os corruptos da escuridão, do voto secreto, saibam que eles estão se suicidando em conjunto. Se Renan for absolvido, haverá no país uma mudança "lingüística". Não o fim do lírico "trema" que querem abolir, mas uma novilíngua que se inicia: a verdade é mentira e vice-versa. O palpável não se toca, o evidente não brilha, o óbvio se apaga. Institui-se a nova jurisprudência da mentira legítima. Aprovada em plenário. Carimbada, com fitinha azul. Durante as sessões vindouras, o plenário do Senado parecerá vazio (mesmo cheio); a arquitetura ficará nua, a tapeçaria, azul, para evocar a paz; a sabedoria dos patres conscripti vai contrair um furta-cor acusatório, será o matiz hipócrita de uma missão traída. Tudo parecerá falso, as sessões vão virar um teatro burlesco, um circo de sacanagens assumidas. O Senado vai virar uma novela sem fim a que assistiremos para sempre, com cenas inesquecíveis como o recente choro do mamulengo Roriz, como o trêmulo vexame das oposições com medo de chantagens e com as acusações mútuas de "bonecas". Haverá silêncios constrangidos entre os oradores. Cada vez que se pronunciar "Vossa Excelência", um travo de amargor pontuará as sílabas, haverá o perigo de gargalhadas nas galerias, crises de engasgos de vergonha. Nas consciências perpassarão rostos de homens honrados, de nobres fantasmas como Afonso Arinos, Santiago Dantas, Milton Campos... O secular cinismo vai continuar, claro, mas a consciência do vexame vai se instilar nos cafezinhos, nos mictórios, algo mugirá nos cantos, como um bicho lamentoso. Os senadores não terão mais coragem de desafiar: "Você sabe com quem está falando?", pois a resposta poderá ser devastadora. Estranhamente, creio que a eventual absolvição de Renan vai gerar um ódio mudo contra ele, principalmente entre os que o salvaram. Seu sorriso vitorioso, seus dedos em "V" serão insuportáveis a seus aliados invejosos, pois os sabem não merecidos. Mesmo seus ajudantes-de-ordem como Almeida Lima ou o suplente-Rapunzel, Wellington Salgado, rosnarão pelos cantos contra a ingratidão do chefe, livre, indo comemorar no Piantella. Mesmo em nós, a platéia vetada para a sessão, haverá uma mudança "existencial". Ficaremos menos democráticos, vamos sonhar com tanques de guerra e déspotas esclarecidos. Alguns filhos talvez passem a encarar os pais com desconfiança, talvez algumas amantes forjem orgasmos decepcionados. Aos poucos, um lampejo de arrogância vai se instalar nos olhos dos seguranças, dos contínuos, dos servidores de cafezinho; aos poucos, com crescente desrespeito, chegarão a dar tapinhas de intimidade folgada nas costas dos parlamentares humilhados. No almoxarifado, faxineiros roubarão latas de detergentes, vassouras, desentupidores de privada, as moças da limpeza deixarão os banheiros sujos e, quem sabe, uma grande inundação de fezes vai emporcalhar os tapetes azuis, que apodrecerão aos poucos, os lustres cairão como jacas moles, e o teto vai murchar como um bolo solado. Nos subterrâneos e esgotos, uma assembléia de ratos e lacraias fará a mímica das sessões plenárias. Por outro lado, haverá milagres pelos grotões de Alagoas. Como a verdade virou mentira, e a mentira virou verdade, os açougues-fantasmas e falidos em remotos desertos se encherão de carne das boiadas de Renan, carcaças se inflarão, as bocas desdentadas dos analfabetos-laranja se encherão de dentes, o município de Muricy se transformará numa festa permanente de cerveja Schincariol, um "oktober fest" da caatinga, os cheques fajutos vão revoar como andorinhas sobre Brasília, as fazendas imaginárias se encherão de boiadas, as churrasqueiras vão enfumaçar os campos em hecatombes homéricas, e o sertão vai virar mar, e multidões do cabresto do Bolsa Família virão adorar novos padinhos Cíceros, e Lula se abraçará com Renan, finalmente em paz com o PMDB. E o mentor de tudo, o dono do Maranhão, aparecerá no final, de bigode aparado e jaquetão impecável, como sempre, intocado pela História. E o dia vai raiar depois da grande festa, mas, junto com a "aurora de dedos róseos", os indícios da boa e velha inflação já estarão aparecendo no horizonte lulista. Batido pelo vento da manhã, um dragão da independência contempla a bandeira brasileira no alto do mastro. O vento é forte, mas a bandeira não se move, apodrecendo na praça, nosso lindo pendão da desesperança. |
Entrevista:O Estado inteligente
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terça-feira, setembro 11, 2007
Arnaldo Jabor - Que vai acontecer com o Senado amanhã?
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