Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, julho 03, 2006

A servidão voluntária em Banânia Reinaldo Azevedo


O Globo
1/7/2006

Chamo o Brasil de “Banânia” em meu blog. É uma homenagem a Ivan
Lessa, que botou no Gigante Adormecido a alcunha de “Bananão”, e a
Musil, de “O homem sem qualidades”. A não-ação do romance se passa em
Kakânia, um lugar imaginário, metáfora da Áustria, onde uma contínua
decadência da vida espiritual, dos valores e dos costumes vai
recobrindo a existência e os dias.

Em Kakânia, “as pessoas eram negativamente livres, constantemente
envoltas nos motivos insuficientes da própria existência, e banhadas
pela grande fantasia do não-acontecido (...)” . O país imaginário de
Musil não nos traduz exatamente porque dotado de algumas sutilezas
que só podiam ser percebidas pela “fina roupa de baixo da
consciência” . Já o Bananão, de Lessa, confere a rusticidade que nos
é devida. Como não somos mais tão grosseiramente inocentes, eis
Banânia: misto de primitivismo e cinismo.

Kakânia contava com o conde Stallburg, simpaticamente decadente,
olimpicamente incapaz. Banânia está submetida a um babalorixá que não
tem pejo de expressar o prazer que sente diante da miséria. Sob o
olhar complacente ou interessado dos nossos “liberais”, vai
transformando a cidadania em clientela, o poder público em balcão, a
igualdade em sopão. E sem que a agenda de seu partido seja
confrontada. Os grão-vizires de Banânia foram seqüestrados pela pauta
do Sumo Sacerdote do Lugar Comum. A tolice, dignificada pelo discurso
da humildade arrogante, define hoje a agenda dos partidos.

Na quinta, um grupo de intelectuais ousou romper o silêncio e
entregou aos presidentes da Câmara e do Senado um manifesto contra o
racismo. O texto, assinado por 114 pessoas, opõe-se à política das
cotas raciais nas universidades e ao Estatuto da Igualdade Racial,
que introduz no Brasil a classificação oficial de raças. Só modelos
totalitários tornaram essa definição compulsória.

O texto, a um só tempo, é sinal de esperança e danação. Espanta-me
que, até agora, não haja um só partido de oposição ao petismo e a
esse onguismo que depreda o estado de direito que tenha tido a
coragem de se levantar contra esses novos coronéis urbanos. Do que
tanto têm medo os oposicionistas? Ah, de que alguns colunistas
coroados — aqueles que caíram no pote da verdade como Obelix no da
poção mágica — lhes pespeguem a pecha de “conservadores”,
“reacionários” ou “direitistas”.

São “negativamente livres”, na expressão de Musil, porque dependentes
do olhar complacente de estranhos. Tornaram-se contínuos ou de suas
obsessões ou de uma pauta que não lhes pertence. Precisam ser
“progressistas”, pouco importando se esse “progresso” destrói o
conceito de nação, de igualdade, de harmonia entre as diferenças;
pouco importando se o meio de exercê-lo apela a métodos consagrados
por delírios totalitários — como é o caso de uma definição
“científica” de raça. Concedem sempre para evitar o mal maior. Como
Chamberlain... Coitados de nós!

O senador Paulo Paim (PT-RS), autor do estatuto, não fez por menos.
Classificou os signatários de “laranjas dos interesses
conservadores”. É um encanto. Conheço muitos dos que subscreveram o
documento: os há ali de várias colorações ideológicas — ninguém da
direita, mesmo a democrática. Mas digamos que fossem: por que não
poderiam aparecer em sua própria pele e precisariam apelar a
intermediários? É espantoso que não se identifique nessa fala um viés
totalitário, que só confere a um dos lados o direito ou a
possibilidade da existência autônoma.

Em Banânia, senhores signatários, um documento tão sensato corre o
risco de desaparecer. Os petistas usam a causa para caçar votos e
cassar direitos, e os oposicionistas, no geral, não querem nem mesmo
participar de um debate que consideram hostil aos hierarcas dos
oprimidos, aos aiatolás de seu xiismo particular. Os oposicionistas
dão é piscadelas à minoria barulhenta — que, no entanto, não lhes dá
a mínima bola — e ignoram, porque supostamente “reacionária”, a
maioria silenciosa. A destruição de um país é uma obra coletiva. E os
antagonistas não têm, na tragédia, papel de menos destaque do que os
protagonistas.

REINALDO AZEVEDO é jornalista. E-mail: mahfud@uol.com.br.

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