Luis Henrique B. Braido*
Em 1º de maio de 2006, o governo boliviano anunciou a nacionalização de todas as etapas da produção e distribuição da indústria de hidrocarbonetos em seu território. Tropas militares ocuparam postos de produção, refinarias e dutos, expropriando o patrimônio de inúmeras empresas multinacionais, entre elas, a Petrobrás. Diferentes segmentos da sociedade brasileira reagiram com enorme indignação ao episódio que contraria os interesses da Petrobrás, afeta os planos de expansão de alguns setores da indústria nacional e expõe uma fratura de nossa política externa. A imprensa brasileira divulga pesadas e merecidas críticas ao Ministério das Relações Exteriores, que discute a construção de um gigantesco gasoduto para promover a integração energética sul-americana. Entretanto, pouco tem sido mencionado sobre episódios recentes em que o Brasil também desrespeitou direitos privados sob a justificativa de proteção à população.
Apesar de amargo, precisamos reconhecer que a sociedade brasileira é bastante leniente com usurpações de direitos ocorridas em nosso país. Remontando ao século 19, a família real portuguesa costumava desapropriar residências privadas em nosso território para uso pessoal. Esse traço pitoresco da formação social do Brasil reflete o precário estágio de nossos colonizadores quanto a valores capitalistas já comuns a outros povos.
Nos tempos modernos, por ocasião de diferentes planos econômicos, foi comum exigir que empresários tabelassem preços em prol de políticas de combate à inflação. Também temos sido tolerantes com a cópia ilegal e a falsificação de marcas e produtos. Recentemente, desrespeitamos direitos de propriedade intelectual de indústrias produtoras de medicamentos utilizados no tratamento da aids. Não só praticamos chantagem contra laboratórios internacionais, forçando-os a baixar seus preços, como também defendemos a internacionalização dessa política. Há ainda vários casos de ameaças e quebras de contratos em períodos de reajustes de tarifas de planos de saúde e telefones. Por fim, mas sem exaurir a lista de exemplos, patrocinamos a separação dos leilões de venda de energia elétrica em 2005, em que usinas com capacidade já instalada - e, portanto, sem condições de exigir preços que remunerassem os investimentos já realizados - foram isoladas de empresas cujos despachos dependeriam de novos projetos, os quais não seriam realizados exceto se devidamente recompensados.
O funcionamento de vários setores produtivos depende da realização de investimentos em pesquisa e desenvolvimento tecnológico a serem posteriormente compensados pela fixação de preços acima dos custos marginais. Empresas realizam diferentes projetos arriscados, de modo que eventuais fracassos sejam compensados pelos lucros advindos dos projetos bem-sucedidos. Não obstante, governos expropriadores costumam justificar seus atos com o argumento de que o capital investido no projeto específico já fora recuperado, desconsiderando-se os riscos previamente assumidos.
É fato que ganhos de escala reduzem o número de empresas operando nesses mercados, levando-as a deter o poder de fixar preços. Abuso de poder econômico é por vezes utilizado como pretexto para a expropriação governamental. Não há, porém, novidade alguma em afirmar que a melhor forma de se lidar com poder de mercado não é via de chantagens ou usurpações, mas sim pela adoção de mecanismos regulatórios sensatos, estáveis e livres de interferências políticas - uma vez que o curto horizonte eleitoral reduz o peso de considerações de longo prazo em decisões políticas.
A usurpação de bens e direitos foram práticas comuns às economias pré-capitalistas. Algumas sociedades convenceram-se, há séculos, das conseqüências maléficas de tais práticas, que vão desde a propagação de medo e insegurança até o desestímulo à poupança e ao investimento privado. Tais sociedades desenvolveram-se economicamente e, hoje, patrocinam um ambiente de negócios que sustenta investimentos e promove inovações tecnológicas que revolucionam o modo de vida em nosso planeta. Podemos amadurecer com o episódio boliviano se refletirmos melhor sobre escolhas semelhantes que, por vezes, também fazemos.
*Luis Henrique Bertolino Braido, Ph.D. em Economia pela Universidade de Chicago, professor da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV-EPGE), é pesquisador do CNPq