Hipótese para a guinada à esquerda
Entrevista de Jorge Castañeda a Paulo Sotero, O Estado de S. Paulo (30/04/06)
Reformismo econômico dos anos 90 não viu a massa de excluídos que fermentava na América Latina e hoje coloca a centro-esquerda no poder, diz Castañeda
Paulo Sotero
De Jorge Germán Castañeda Gutman pode-se dizer que, ao longo de 30 anos de militância e atividade acadêmica, ele defendeu posições contraditórias e aparentemente incongruentes e percorreu quase todo o espectro político mexicano. Pode-se dizer, também, que às vezes descuidou da vaidade, permitindo que ela ficasse maior do que sua prodigiosa inteligência. Por isso perdeu amigos na longa trajetória que percorreu como membro do Partido Comunista e simpatizante de Fidel Castro, nos anos 70, e chanceler do governo direitista de Vicente Fox, em 2000. O que não se pode dizer de Jorge Castañeda é que ele tenha perdido o pique e deixado de ser um dos analistas mais afiados das realidades de seu país e das Américas.
Estudou na Universidade de Stanford, fez doutorado na Sorbonne. Fala inglês como americano e francês com parisiense. Prestes a completar 53 anos, vive hoje entre os Estados Unidos, onde ensina na New York University, e o México, onde se dedica ao jornalismo e à atividade acadêmica, depois de ver frustrado seu sonho de candidatar-se à presidência. É filho de um ex-chanceler ligado ao Partido Revolucionário Institucional (PRI) - partido que mandou no México por sete décadas - e que ele, Castañeda, ajudou a derrubar. Também foi adversário ferrenho do Acordo Norte America de Livre Comércio - o Nafta - e das políticas do Consenso de Washington. Em 1996, articulou com Luiz Inácio Lula da Silva, José Dirceu e outros dirigentes da esquerda sul-americana um foro para buscar alternativas ao chamado modelo "neoliberal".
O ecletismo das alianças que fez em sua carreira política sugere que errou, mais de uma vez, no varejo. No próximo dia 2 de julho, votará para o candidato da direita, Felipe Calderón Hinojosa, do Partido de Acción Nacional(PAN), que está emparelhado nas pesquisas com o populista Andrés Manuel López Obrador, do Partido Democrático Revolucionário (PDR), por quem nutre intensa e correspondida antipatia.
Nas grandes questões, porém, Castañeda acertou em cheio, seja como intelectual, seja como político. Na primeira condição, fez uma análise pioneira e abrangente sobre os desafios das esquerdas na América Latina no livro A Utopia Desarmada, de 1994. Na última edição da revista Foreign Affairs, ofereceu uma límpida análise sobre a atual virada política do continente, advertindo que os governos mais ruidosos não passam, na verdade, de reencarnações do que há de mais antigo e direitista na história da região.
Como ministro das Relações Exteriores de seu país entre 2000 e 2003, Castañeda anteviu a importância que a questão da imigração assumiria nas relações entre os Estados Unidos, por um lado, e o México e demais países da região, por outro. Tanto que é autor de propostas para regularizar a situação dos milhões de indocumentados e para controlar fronteiras, temas ultra complexos, abraçados hoje por americanos dos dois partidos. Na semana passada, de passagem por Washington, concedeu a seguinte entrevista.
Por que a América Latina guinou para a esquerda nos últimos anos?
Basicamente, por duas razões. Por um lado, as reformas econômicas realizadas no período da democratização não produziram os resultados prometidos às pessoas. O Chile é exceção. Por outro lado, os governos desse período produziram resultados positivos em termos de democracia. Se você permite que as pessoas votem livremente em países cujas economias não prosperam, não é portanto um milagre haver um movimento para a esquerda.Aconteceu na Europa entre o fim do século 19 e a 2ª Guerra. E acontece hoje na América Latina. Os pobres, a grande massa dos excluídos, votam pelas políticas e para políticos que, assim esperam, os farão menos pobres. Quando escrevi A Utopia Desarmada: a Esquerda Latino Americana depois da Guerra Fria (publicado em 1994) já estava claro para mim que, independentemente dos resultados das reformas econômicas então em curso em vários países, a combinação de mais democracia com a desigualdade no acesso à renda, à riqueza, ao poder e às oportunidades, que é maior na América Latina do que em qualquer outra parte do mundo, resultaria em governos de centro esquerda na região.
Mas a virada à esquerda a que estamos assistindo é mais forte do que isso.
É e não é. A falta de compreensão da natureza da guinada gera uma certa histeria. O que vemos hoje são duas esquerdas. Temos, por um lado, o que eu chamo de a "boa esquerda", que, paradoxalmente, é herdeira da esquerda tradicional, identificada com os partidos socialistas e comunistas do passado. Em graus variados, ela é reformista, moderna, está aberta a novas idéias. É também internacionalista. Estou falando aqui na esquerda do Chile, de parte da esquerda brasileira, de parte da esquerda uruguaia. Ela busca a inclusão através de políticas sociais, da criação de empregos, de programas para melhorar a educação, a saúde, as condições e de organização das pessoas, respeitando os equilíbrios macroeconômicos básicos. É uma esquerda que busca resultados.
E a outra?
A outra é herdeira do populismo, que é a contribuição da América Latina à ciência política e o que há de pior em nossa história. É nacionalista, barulhenta, mentalmente fechada. É, essencialmente, burra. Ao contrário da esquerda reformista, que aprendeu com os erros do passado, a esquerda populista não aprendeu nada. É de esquerda só na retórica. Na ação, nada oferece de novo. Repete os populistas do passado. Sua solução para os problemas é distribuir dinheiro público. É assim que tenta incluir as massas. É o que faz Chávez com a gente pobre dos ranchos de Caracas. Ela dá dinheiro porque tem dinheiro, graças ao petróleo. Não está criando emprego, não está melhorando a educação, não está levando à redução dos níveis de pobreza. O mesmo ocorre com Kirchner, na Argentina. Ele não tem uma política econômica de geração de emprego, de busca de competitividade, de melhoria da educação. O que há é a redução dos pagamentos da dívida e distribuição do dinheiro por meio de programas assistenciais.
Qual é o fôlego dessas duas esquerdas?
O Chile está demonstrando a longevidade de sua social democracia. Já dura 17 anos, produziu bons resultados e permanece promissora. No outro caso, depende de fatores muito aleatórios, como preço das commodities. Chávez depende do preço do petróleo. No caso de Kirchner, vamos saber logo, pois a inflação já começa novamente a disparar na Argentina e há sinais de retorno de problemas mais sérios que o forçarão a ir buscar dinheiro nos mercados. Veremos, então, se vão-lhe cobrar seus desplantes nacionalistas. Kirchner é um exemplo acabado do aspecto autofágico do populismo, que Francisco Weffort descreveu há 30 anos: gasta mais do que tem, cria dívida que não pode pagar e logo vem a crise.
Segundo sua análise, enquanto uma parte da esquerda evolui para a social democracia, outra involui para o populismo. Nesse contexto, qual é a relevância do modelo castrista hoje?
Nenhuma, como modelo. O que acontece é que, hoje, Fidel tem muita influência através de Chávez. Fidel confessou recentemente para Ignacio Ramonet (diretor do Le Monde Diplomatique) que foi ele próprio quem negociou a saída de Chávez no golpe de abril de 2002. Tem uma enorme influência. Há 30 mil cubanos na Venezuela. Pela primeira vez, graças a Chávez, Fidel tem os meios de sua política. Não tem que mandar dez pobres gatos com Che à Bolívia. Pode mandar milhões e milhões de dólares à Bolívia.
Mas a biologia sugere que o fim do regime castrista não deve estar longe.
Mas aí entramos no terreno da pura especulação. O que se pode dizer de concreto é que a aliança com Chávez deu a Fidel e ao regime um novo fôlego. Para Cuba, a solução biológica pode se dar assim, em condição de certo dinheiro, de certa comodidade financeira, por causa do apoio de Chávez. Isso presumindo que Chávez se mantenha.
E o senhor arriscaria uma previsão sobre a longevidade política de Chávez?
Isso depende, em primeiro lugar, do preço do petróleo. Mas é possível que estejamos fazendo uma relação demasiada automática. Pode acontecer alguma coisa na Venezuela antes que caia o preço do petróleo. Há pontes que já estão caindo naquele país. Depois de oito anos de Chávez , como uma enorme receita de petróleo, a infra-estrutura do país está pior e não melhor. As pessoas que começam a se cansar da forma como Chávez gasta o dinheiro público e do fato de que não se concentra nas coisas internas, de que não melhora a situação do povo, de que não há emprego, educação. É bom que haja médicos cubanos para as pessoas mais pobres, mas essa não é uma solução para os problemas de Venezuela.
Em recente artigo, o senhor descreveu Chávez como "um Perón com petróleo". Evo Morales seria, de alguma forma, uma reencarnação de Che Guevara?
Morales não é o Che. É líder de um movimento camponês tradicional, latino-americano, que chega ao poder por uma série de ações um pouco caudilhescas. Morales não vem da esquerda. Não vem nem da tradição da COB (Central Obrera Boliviana), nem do Partido Comunista, nem do trotskismo boliviano, que foi importante em seu momento. Não, Morales é um dirigente cocalero cuja força deriva em parte dos indígeneas, em parte de uma base popular entre os excluídos nas cidades, por razões que não têm muito a ver com fenômenos de esquerda.
É democrático?
Suas atitudes não são. É alguém que sugere, em algumas declarações, que quer a revanche dos excluídos, excluindo agora os que os excluíram no passado. Não é uma atitude especialmente democrática. Vamos ver o que põe em prática. Morales não precisa ser necessariamente revanchista.
Andrés Manuel López Obrador é um Lula, um Chávez mexicano?
López Obrador é um tradicional fenômeno populista latino-americano e especialmente mexicano. Ele é o PRI (partido que governou o México como se fosse um partido único durante sete décadas, até perder as eleições de 2000 para Vicente Fox). É o PRI honesto. Seus colaboradores são muito corruptos e eu estou convencido de que ele lhes permite roubar para a coroa. Pessoalmente, é um homem muito honesto. Mas é o PRI. Não vem da esquerda. Não processou todo esse grande fenômeno de reconstrução da esquerda na América Latina, de entender o que aconteceu em Cuba, na União Soviética, por que caiu o socialismo. Tudo isso é estranho a ele. Não lhe interessa nada disso. Ele vem do PRI de Echeverria e de Lopez Portillo, da mesma forma como Chávez vem do exército e como Morales que vem dos cocaleros. Não é Lula nem é Chávez. Representa uma forma de fazer política, de tentar resolver os problemas do país com estatismo, com o protecionismo, fechado em si mesmo. Tem muita retórica, muita garganta, mas pouca efetividade. E, sobretudo, não tem nenhuma idéia clara de que o governo não pode gastar o dinheiro que não tem.
Por que essas "gargantas" fazem tanto sucesso entre latino-amercianos?
Em parte isso se deve ao fato de que somos democracias muito jovens, como democracias de massas. O Brasil teve democracia no passado, mas uma democracia de elites. A atual tem 20 anos. A democracia mexicana tem 10 anos. Estamos na fase inicial de um longo processo que toma tempo. Não nos esqueçamos do que passou na Alemanha nos anos 30. As pessoas tendem a buscar soluções rápidas e ilusórias para seus problemas. E, quando os problemas são muito graves e dolorosos, buscam soluções mágicas, aplaudem López Obrador quando ele diz, como fez recentemente, que vai financiar as aposentadorias dos mexicanos tirando a aposentadoria dos ex-presidentes do país, que são cinco, um dos quais já renunciou à pensão.
O senhor conviveu com Lula e José Dirceu em meados dos anos 90, quando buscou, com outros representantes da esquerda, uma alternativa ao chamado Consenso de Washington. O escândalo de corrupção do governo petista o surpreendeu?
Foi muito doloroso para mim, pois tinha uma impressão diferente de todos eles. Creio, no entanto, que não se beneficiaram pessoalmente, que se tratou uma operação política. Por outro lado, o escândalo não me surpreendeu de todo, porque o PT chegou ao poder com uma enorme arrogância.Vi todos eles várias vezes antes do triunfo e no período de transição. E os vi imediatamente depois da posse. Chegaram ao poder com uma imensa arrogância, com uma prepotência inacreditável. Iam mudar o mundo e sabiam exatamente como iriam fazê-lo. A combinação da inexperiência com a arrogância é terrível. Para quem acompanhava o governo de fora, a arrogância foi clara. Recordo-me bem de todo processo de criação de um grupo de amigos da Venezuela para resolver a crise de 2003. O Brasil queria tomar conta do processo para apoiar Chávez, o que não tinha o menor sentido. Se se tratava de apoiar Chávez, os demais não cooperariam.
Como vê a política externa de Lula?
Lula fez bem em projetar uma liderança brasileira sobre outros países, seguindo uma política mais tradicional, porém também mais vigorosa e audaz. Mas não levou em conta todas as realidades e as sensibilidades que existem. Não conseguiu a cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, pela qual o Brasil parece às vezes estar disposto de dar metade da Amazônia. Não conseguiu a diretoria da Organização Mundial do Comércio (OMC). Era difícil que conseguisse a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) - e não conseguiu. E, talvez o mais importante, é que a única solução que o governo Lula encontrou diante da divisão do continente e da rejeição de pretensões brasileiras foi se retrair. Os brasileiros sabem muito bem que não podem ser partidários de Chávez contra os Estados Unidos, mas tampouco querem assumir a posição de intermediários entre eles.
As tensões entre Brasília e La Paz, diante das atitudes assumidas por Evo Morales sobre grandes investidores brasileiros em seu país, refletiriam uma preocupação ou percepção de "imperialismo" brasileiro?
Não creio que o Brasil seja o novo imperialista do continente. Creio é que, no começo, talvez algumas pessoas, não necessariamente o Itamaraty, mas pessoas como Dirceu, como meu amigo Marco Aurélio Garcia, viram em Chávez, Morales, Tabaré e Kirchner líderes de governos progressistas, antiimperialistas e concluíram que este também seria o lugar do Brasil. E este não é o lugar do Brasil. O Brasil é um país demasiado grande, demasiado sério, com demasiados interesses e demasiadas responsabilidades para jogar o antiimperialismo. Esse é um jogo a que só os pequenos se podem permitir. O resultado agora é que estão todos irados com o Brasil. Os bolivianos estão furiosos por causa da Petrobrás e de outras empresas brasileiras. Os uruguaios estão furiosos porque querem mais comércio e investimentos dos Estados Unidos e estão amarrados ao Mercosul. E estão furiosos também os venezuelanos porque sentem que, ao final, o Brasil não insulta Bush. Há uma cota de insultos a Bush que, segundo Chávez, deve ser preenchida. Para ele, se Lula não insultar o presidente americano uma vez por semana, é insuficiente. Acho que as relações entre o Brasil e a Venezuela tendem a piorar.
Por quê?
Porque os interesses reais não são os mesmos. O Brasil quer estabilidade na região. Além disso, uma hora dessas vamos descobrir que Chávez está fazendo coisas contrárias aos compromissos internacionais que firmou. Há suspeitas fortes de envolvimento da Venezuela no tráfico de drogas que estão chegando ao México. Isso não interessa ao Brasil. Como certamente não interessa ao México. Chávez quer insultar Bush? Não deveria, porque é um chefe de Estado. Mas, tudo bem. Agora, Chávez não pode desrespeitar compromissos assumidos. Quando surgirem as provas, os países terão de lhe pedir satisfação e exigir que honre as obrigações internacionais da Venezuela no combate, por exemplo, ao narcotráfico e ao crime organizado.
Como avalia a política de George W. Bush para a região.
É uma grande ausência. Não existe uma política de Bush para a América Latina. Estamos mais distantes e com um número maior de problemas. Falo de problemas muito sérios. E isso ocorre num momento de intenso sentimento antiamericano na América Latina. Nunca vi um antiamericanismo tão forte como o que temos hoje na região. A política de Washington nesses países é claramente insuficiente. O projeto da Alca foi o centro da estratégia de Bush. Não importa se a Alca era boa ou ruim. O que importa é que fracassou. Também não há política ativa sobre narcotráfico. E os EUA parecem não fazer distinção entre as duas esquerdas que há hoje na América Latina. Não está claro se você fará melhor negócio com os EUA estando no lugar de Lagos, hoje substituído no poder por Michelle Bachelet, de Fox ou mesmo de Chávez. Da perspectiva do México, e particularmente de Fox, isso não está claro de jeito nenhum. O tema migratório, por exemplo, pode não ser essencial para a Argentina e o Chile, mas é fundamental para o México, para a América Central e o Caribe. Pois Bush não tem uma política clara. Não quer se comprometer com o acordo que está saindo do Senado (que permitiria a legalização de mais de 8 milhões de indocumentados). Já Fox apostou sua presidência nesse tema.
Na questão da imigração, o senhor acha que os americanos compreendem que, queiram ou não, seu país está ficando mais latino-americano?
Estão começando a entender, e isso lhes dá muito medo. Não tinham medido direito quantos são os imigrantes, de quantos países e em quantas partes dos EUA eles estão. As gigantescas manifestações que vimos recentemente em Los Angeles talvez não os tenha surpreendido tanto. Mas as que aconteceram em Phoenix, Detroit, Dallas, Milwaukee e dezenas de outras cidades certamente os deixaram perplexos. Nós sabíamos qual era o tamanho da imigração, mas parece que os americanos ignoravam isso.
O senhor deve se sentir de certa forma vingado, pois, como chanceler do México, levou Fox a propor a Bush uma redefinição histórica da relação entre os dois países, assentada na reforma das leis de imigração dos EUA.
Estivemos muito perto da solução. Aí veio o 11 de setembro, que não foi apenas uma razão para que a discussão não fosse adiante, mas também um pretexto. Para os não queriam a reforma, os atentados terroristas deram um argumento válido para nada fazer. Os que queriam ficaram sem argumento. Agora, mais de cinco anos depois, estamos novamente perto de um acerto. Se acontecer, será quase idêntico ao que propusemos em 2001. Por quê? Porque o que propusemos foi a solução lógica. Legalizam-se os que já estão aqui e organiza-se a entrada na fronteira.
Paulo Sotero
De Jorge Germán Castañeda Gutman pode-se dizer que, ao longo de 30 anos de militância e atividade acadêmica, ele defendeu posições contraditórias e aparentemente incongruentes e percorreu quase todo o espectro político mexicano. Pode-se dizer, também, que às vezes descuidou da vaidade, permitindo que ela ficasse maior do que sua prodigiosa inteligência. Por isso perdeu amigos na longa trajetória que percorreu como membro do Partido Comunista e simpatizante de Fidel Castro, nos anos 70, e chanceler do governo direitista de Vicente Fox, em 2000. O que não se pode dizer de Jorge Castañeda é que ele tenha perdido o pique e deixado de ser um dos analistas mais afiados das realidades de seu país e das Américas.
Estudou na Universidade de Stanford, fez doutorado na Sorbonne. Fala inglês como americano e francês com parisiense. Prestes a completar 53 anos, vive hoje entre os Estados Unidos, onde ensina na New York University, e o México, onde se dedica ao jornalismo e à atividade acadêmica, depois de ver frustrado seu sonho de candidatar-se à presidência. É filho de um ex-chanceler ligado ao Partido Revolucionário Institucional (PRI) - partido que mandou no México por sete décadas - e que ele, Castañeda, ajudou a derrubar. Também foi adversário ferrenho do Acordo Norte America de Livre Comércio - o Nafta - e das políticas do Consenso de Washington. Em 1996, articulou com Luiz Inácio Lula da Silva, José Dirceu e outros dirigentes da esquerda sul-americana um foro para buscar alternativas ao chamado modelo "neoliberal".
O ecletismo das alianças que fez em sua carreira política sugere que errou, mais de uma vez, no varejo. No próximo dia 2 de julho, votará para o candidato da direita, Felipe Calderón Hinojosa, do Partido de Acción Nacional(PAN), que está emparelhado nas pesquisas com o populista Andrés Manuel López Obrador, do Partido Democrático Revolucionário (PDR), por quem nutre intensa e correspondida antipatia.
Nas grandes questões, porém, Castañeda acertou em cheio, seja como intelectual, seja como político. Na primeira condição, fez uma análise pioneira e abrangente sobre os desafios das esquerdas na América Latina no livro A Utopia Desarmada, de 1994. Na última edição da revista Foreign Affairs, ofereceu uma límpida análise sobre a atual virada política do continente, advertindo que os governos mais ruidosos não passam, na verdade, de reencarnações do que há de mais antigo e direitista na história da região.
Como ministro das Relações Exteriores de seu país entre 2000 e 2003, Castañeda anteviu a importância que a questão da imigração assumiria nas relações entre os Estados Unidos, por um lado, e o México e demais países da região, por outro. Tanto que é autor de propostas para regularizar a situação dos milhões de indocumentados e para controlar fronteiras, temas ultra complexos, abraçados hoje por americanos dos dois partidos. Na semana passada, de passagem por Washington, concedeu a seguinte entrevista.
Por que a América Latina guinou para a esquerda nos últimos anos?
Basicamente, por duas razões. Por um lado, as reformas econômicas realizadas no período da democratização não produziram os resultados prometidos às pessoas. O Chile é exceção. Por outro lado, os governos desse período produziram resultados positivos em termos de democracia. Se você permite que as pessoas votem livremente em países cujas economias não prosperam, não é portanto um milagre haver um movimento para a esquerda.Aconteceu na Europa entre o fim do século 19 e a 2ª Guerra. E acontece hoje na América Latina. Os pobres, a grande massa dos excluídos, votam pelas políticas e para políticos que, assim esperam, os farão menos pobres. Quando escrevi A Utopia Desarmada: a Esquerda Latino Americana depois da Guerra Fria (publicado em 1994) já estava claro para mim que, independentemente dos resultados das reformas econômicas então em curso em vários países, a combinação de mais democracia com a desigualdade no acesso à renda, à riqueza, ao poder e às oportunidades, que é maior na América Latina do que em qualquer outra parte do mundo, resultaria em governos de centro esquerda na região.
Mas a virada à esquerda a que estamos assistindo é mais forte do que isso.
É e não é. A falta de compreensão da natureza da guinada gera uma certa histeria. O que vemos hoje são duas esquerdas. Temos, por um lado, o que eu chamo de a "boa esquerda", que, paradoxalmente, é herdeira da esquerda tradicional, identificada com os partidos socialistas e comunistas do passado. Em graus variados, ela é reformista, moderna, está aberta a novas idéias. É também internacionalista. Estou falando aqui na esquerda do Chile, de parte da esquerda brasileira, de parte da esquerda uruguaia. Ela busca a inclusão através de políticas sociais, da criação de empregos, de programas para melhorar a educação, a saúde, as condições e de organização das pessoas, respeitando os equilíbrios macroeconômicos básicos. É uma esquerda que busca resultados.
E a outra?
A outra é herdeira do populismo, que é a contribuição da América Latina à ciência política e o que há de pior em nossa história. É nacionalista, barulhenta, mentalmente fechada. É, essencialmente, burra. Ao contrário da esquerda reformista, que aprendeu com os erros do passado, a esquerda populista não aprendeu nada. É de esquerda só na retórica. Na ação, nada oferece de novo. Repete os populistas do passado. Sua solução para os problemas é distribuir dinheiro público. É assim que tenta incluir as massas. É o que faz Chávez com a gente pobre dos ranchos de Caracas. Ela dá dinheiro porque tem dinheiro, graças ao petróleo. Não está criando emprego, não está melhorando a educação, não está levando à redução dos níveis de pobreza. O mesmo ocorre com Kirchner, na Argentina. Ele não tem uma política econômica de geração de emprego, de busca de competitividade, de melhoria da educação. O que há é a redução dos pagamentos da dívida e distribuição do dinheiro por meio de programas assistenciais.
Qual é o fôlego dessas duas esquerdas?
O Chile está demonstrando a longevidade de sua social democracia. Já dura 17 anos, produziu bons resultados e permanece promissora. No outro caso, depende de fatores muito aleatórios, como preço das commodities. Chávez depende do preço do petróleo. No caso de Kirchner, vamos saber logo, pois a inflação já começa novamente a disparar na Argentina e há sinais de retorno de problemas mais sérios que o forçarão a ir buscar dinheiro nos mercados. Veremos, então, se vão-lhe cobrar seus desplantes nacionalistas. Kirchner é um exemplo acabado do aspecto autofágico do populismo, que Francisco Weffort descreveu há 30 anos: gasta mais do que tem, cria dívida que não pode pagar e logo vem a crise.
Segundo sua análise, enquanto uma parte da esquerda evolui para a social democracia, outra involui para o populismo. Nesse contexto, qual é a relevância do modelo castrista hoje?
Nenhuma, como modelo. O que acontece é que, hoje, Fidel tem muita influência através de Chávez. Fidel confessou recentemente para Ignacio Ramonet (diretor do Le Monde Diplomatique) que foi ele próprio quem negociou a saída de Chávez no golpe de abril de 2002. Tem uma enorme influência. Há 30 mil cubanos na Venezuela. Pela primeira vez, graças a Chávez, Fidel tem os meios de sua política. Não tem que mandar dez pobres gatos com Che à Bolívia. Pode mandar milhões e milhões de dólares à Bolívia.
Mas a biologia sugere que o fim do regime castrista não deve estar longe.
Mas aí entramos no terreno da pura especulação. O que se pode dizer de concreto é que a aliança com Chávez deu a Fidel e ao regime um novo fôlego. Para Cuba, a solução biológica pode se dar assim, em condição de certo dinheiro, de certa comodidade financeira, por causa do apoio de Chávez. Isso presumindo que Chávez se mantenha.
E o senhor arriscaria uma previsão sobre a longevidade política de Chávez?
Isso depende, em primeiro lugar, do preço do petróleo. Mas é possível que estejamos fazendo uma relação demasiada automática. Pode acontecer alguma coisa na Venezuela antes que caia o preço do petróleo. Há pontes que já estão caindo naquele país. Depois de oito anos de Chávez , como uma enorme receita de petróleo, a infra-estrutura do país está pior e não melhor. As pessoas que começam a se cansar da forma como Chávez gasta o dinheiro público e do fato de que não se concentra nas coisas internas, de que não melhora a situação do povo, de que não há emprego, educação. É bom que haja médicos cubanos para as pessoas mais pobres, mas essa não é uma solução para os problemas de Venezuela.
Em recente artigo, o senhor descreveu Chávez como "um Perón com petróleo". Evo Morales seria, de alguma forma, uma reencarnação de Che Guevara?
Morales não é o Che. É líder de um movimento camponês tradicional, latino-americano, que chega ao poder por uma série de ações um pouco caudilhescas. Morales não vem da esquerda. Não vem nem da tradição da COB (Central Obrera Boliviana), nem do Partido Comunista, nem do trotskismo boliviano, que foi importante em seu momento. Não, Morales é um dirigente cocalero cuja força deriva em parte dos indígeneas, em parte de uma base popular entre os excluídos nas cidades, por razões que não têm muito a ver com fenômenos de esquerda.
É democrático?
Suas atitudes não são. É alguém que sugere, em algumas declarações, que quer a revanche dos excluídos, excluindo agora os que os excluíram no passado. Não é uma atitude especialmente democrática. Vamos ver o que põe em prática. Morales não precisa ser necessariamente revanchista.
Andrés Manuel López Obrador é um Lula, um Chávez mexicano?
López Obrador é um tradicional fenômeno populista latino-americano e especialmente mexicano. Ele é o PRI (partido que governou o México como se fosse um partido único durante sete décadas, até perder as eleições de 2000 para Vicente Fox). É o PRI honesto. Seus colaboradores são muito corruptos e eu estou convencido de que ele lhes permite roubar para a coroa. Pessoalmente, é um homem muito honesto. Mas é o PRI. Não vem da esquerda. Não processou todo esse grande fenômeno de reconstrução da esquerda na América Latina, de entender o que aconteceu em Cuba, na União Soviética, por que caiu o socialismo. Tudo isso é estranho a ele. Não lhe interessa nada disso. Ele vem do PRI de Echeverria e de Lopez Portillo, da mesma forma como Chávez vem do exército e como Morales que vem dos cocaleros. Não é Lula nem é Chávez. Representa uma forma de fazer política, de tentar resolver os problemas do país com estatismo, com o protecionismo, fechado em si mesmo. Tem muita retórica, muita garganta, mas pouca efetividade. E, sobretudo, não tem nenhuma idéia clara de que o governo não pode gastar o dinheiro que não tem.
Por que essas "gargantas" fazem tanto sucesso entre latino-amercianos?
Em parte isso se deve ao fato de que somos democracias muito jovens, como democracias de massas. O Brasil teve democracia no passado, mas uma democracia de elites. A atual tem 20 anos. A democracia mexicana tem 10 anos. Estamos na fase inicial de um longo processo que toma tempo. Não nos esqueçamos do que passou na Alemanha nos anos 30. As pessoas tendem a buscar soluções rápidas e ilusórias para seus problemas. E, quando os problemas são muito graves e dolorosos, buscam soluções mágicas, aplaudem López Obrador quando ele diz, como fez recentemente, que vai financiar as aposentadorias dos mexicanos tirando a aposentadoria dos ex-presidentes do país, que são cinco, um dos quais já renunciou à pensão.
O senhor conviveu com Lula e José Dirceu em meados dos anos 90, quando buscou, com outros representantes da esquerda, uma alternativa ao chamado Consenso de Washington. O escândalo de corrupção do governo petista o surpreendeu?
Foi muito doloroso para mim, pois tinha uma impressão diferente de todos eles. Creio, no entanto, que não se beneficiaram pessoalmente, que se tratou uma operação política. Por outro lado, o escândalo não me surpreendeu de todo, porque o PT chegou ao poder com uma enorme arrogância.Vi todos eles várias vezes antes do triunfo e no período de transição. E os vi imediatamente depois da posse. Chegaram ao poder com uma imensa arrogância, com uma prepotência inacreditável. Iam mudar o mundo e sabiam exatamente como iriam fazê-lo. A combinação da inexperiência com a arrogância é terrível. Para quem acompanhava o governo de fora, a arrogância foi clara. Recordo-me bem de todo processo de criação de um grupo de amigos da Venezuela para resolver a crise de 2003. O Brasil queria tomar conta do processo para apoiar Chávez, o que não tinha o menor sentido. Se se tratava de apoiar Chávez, os demais não cooperariam.
Como vê a política externa de Lula?
Lula fez bem em projetar uma liderança brasileira sobre outros países, seguindo uma política mais tradicional, porém também mais vigorosa e audaz. Mas não levou em conta todas as realidades e as sensibilidades que existem. Não conseguiu a cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, pela qual o Brasil parece às vezes estar disposto de dar metade da Amazônia. Não conseguiu a diretoria da Organização Mundial do Comércio (OMC). Era difícil que conseguisse a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) - e não conseguiu. E, talvez o mais importante, é que a única solução que o governo Lula encontrou diante da divisão do continente e da rejeição de pretensões brasileiras foi se retrair. Os brasileiros sabem muito bem que não podem ser partidários de Chávez contra os Estados Unidos, mas tampouco querem assumir a posição de intermediários entre eles.
As tensões entre Brasília e La Paz, diante das atitudes assumidas por Evo Morales sobre grandes investidores brasileiros em seu país, refletiriam uma preocupação ou percepção de "imperialismo" brasileiro?
Não creio que o Brasil seja o novo imperialista do continente. Creio é que, no começo, talvez algumas pessoas, não necessariamente o Itamaraty, mas pessoas como Dirceu, como meu amigo Marco Aurélio Garcia, viram em Chávez, Morales, Tabaré e Kirchner líderes de governos progressistas, antiimperialistas e concluíram que este também seria o lugar do Brasil. E este não é o lugar do Brasil. O Brasil é um país demasiado grande, demasiado sério, com demasiados interesses e demasiadas responsabilidades para jogar o antiimperialismo. Esse é um jogo a que só os pequenos se podem permitir. O resultado agora é que estão todos irados com o Brasil. Os bolivianos estão furiosos por causa da Petrobrás e de outras empresas brasileiras. Os uruguaios estão furiosos porque querem mais comércio e investimentos dos Estados Unidos e estão amarrados ao Mercosul. E estão furiosos também os venezuelanos porque sentem que, ao final, o Brasil não insulta Bush. Há uma cota de insultos a Bush que, segundo Chávez, deve ser preenchida. Para ele, se Lula não insultar o presidente americano uma vez por semana, é insuficiente. Acho que as relações entre o Brasil e a Venezuela tendem a piorar.
Por quê?
Porque os interesses reais não são os mesmos. O Brasil quer estabilidade na região. Além disso, uma hora dessas vamos descobrir que Chávez está fazendo coisas contrárias aos compromissos internacionais que firmou. Há suspeitas fortes de envolvimento da Venezuela no tráfico de drogas que estão chegando ao México. Isso não interessa ao Brasil. Como certamente não interessa ao México. Chávez quer insultar Bush? Não deveria, porque é um chefe de Estado. Mas, tudo bem. Agora, Chávez não pode desrespeitar compromissos assumidos. Quando surgirem as provas, os países terão de lhe pedir satisfação e exigir que honre as obrigações internacionais da Venezuela no combate, por exemplo, ao narcotráfico e ao crime organizado.
Como avalia a política de George W. Bush para a região.
É uma grande ausência. Não existe uma política de Bush para a América Latina. Estamos mais distantes e com um número maior de problemas. Falo de problemas muito sérios. E isso ocorre num momento de intenso sentimento antiamericano na América Latina. Nunca vi um antiamericanismo tão forte como o que temos hoje na região. A política de Washington nesses países é claramente insuficiente. O projeto da Alca foi o centro da estratégia de Bush. Não importa se a Alca era boa ou ruim. O que importa é que fracassou. Também não há política ativa sobre narcotráfico. E os EUA parecem não fazer distinção entre as duas esquerdas que há hoje na América Latina. Não está claro se você fará melhor negócio com os EUA estando no lugar de Lagos, hoje substituído no poder por Michelle Bachelet, de Fox ou mesmo de Chávez. Da perspectiva do México, e particularmente de Fox, isso não está claro de jeito nenhum. O tema migratório, por exemplo, pode não ser essencial para a Argentina e o Chile, mas é fundamental para o México, para a América Central e o Caribe. Pois Bush não tem uma política clara. Não quer se comprometer com o acordo que está saindo do Senado (que permitiria a legalização de mais de 8 milhões de indocumentados). Já Fox apostou sua presidência nesse tema.
Na questão da imigração, o senhor acha que os americanos compreendem que, queiram ou não, seu país está ficando mais latino-americano?
Estão começando a entender, e isso lhes dá muito medo. Não tinham medido direito quantos são os imigrantes, de quantos países e em quantas partes dos EUA eles estão. As gigantescas manifestações que vimos recentemente em Los Angeles talvez não os tenha surpreendido tanto. Mas as que aconteceram em Phoenix, Detroit, Dallas, Milwaukee e dezenas de outras cidades certamente os deixaram perplexos. Nós sabíamos qual era o tamanho da imigração, mas parece que os americanos ignoravam isso.
O senhor deve se sentir de certa forma vingado, pois, como chanceler do México, levou Fox a propor a Bush uma redefinição histórica da relação entre os dois países, assentada na reforma das leis de imigração dos EUA.
Estivemos muito perto da solução. Aí veio o 11 de setembro, que não foi apenas uma razão para que a discussão não fosse adiante, mas também um pretexto. Para os não queriam a reforma, os atentados terroristas deram um argumento válido para nada fazer. Os que queriam ficaram sem argumento. Agora, mais de cinco anos depois, estamos novamente perto de um acerto. Se acontecer, será quase idêntico ao que propusemos em 2001. Por quê? Porque o que propusemos foi a solução lógica. Legalizam-se os que já estão aqui e organiza-se a entrada na fronteira.