Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, maio 12, 2006

Acabou: do pitaco ao pito explícito Rui Nogueira

PRIMEIRA LEITURA

Foi a cereja podre no bolo da política externa do governo Lula, um esculacho como a República nunca recebera. Em pouco mais de uma semana, a Venezuela de Hugo Chávez e a Bolívia de Evo Morales atacaram cirurgicamente duas vezes o governo brasileiro sem um pingo de diplomacia. As relações entre os latino-americanos estão pela hora da morte, e quem implantou esse padrão degradante foi o presidente venezuelano.

Em Brasília, na quinta-feira da semana passada, enquanto os quatro presidentes (Lula, Chávez, Morales e Kirchner) se reuniam em Puerto Iguazú, na Argentina, o encarregado de negócios da Embaixada da Bolívia, Pedro Gumucio, deu um pitaco explícito na administração tributária brasileira. Gumucio mandou o governo Lula reduzir os impostos sobre o preço do gás. Para quê? Na opinião dele, para compensar o aumento de impostos e de preços que o governo Evo Morales está aplicando ao gás boliviano prospectado e exportado para o Brasil pela Petrobras. Assim os consumidores brasileiros não sentiriam o efeito do populismo boliviano.

Nesta quarta-feira, a Venezuela passou do pitaco ou pito explícito. Nesse caso, não se trata de uma entrevista isolada de um embaixador ou um encarregado de negócios, mas de uma nota oficial do Ministério das Relações Exteriores da Venezuela. Chávez mandou que o chanceler brasileiro, Celso Amorim, e o assessor especial de Lula para assuntos externos, Marco Aurélio Garcia, parassem de repetir o que a "imprensa reacionária" anda dizendo sobre Evo Morales. Isso é "desrespeitoso", sentenciou.

Caluniadores
Amorim e Garcia foram tratados como dois caluniadores do presidente boliviano. Trata-se do coroamento de todos os erros, o adeus do país a todas as ilusões diplomáticas tolas e toscas. Adeus do país, dos cidadãos e dos eleitores porque não é de imaginar que o governo Lula admita os erros e mude um tico que seja.

O estado deplorável da governança diplomática pode ser avaliado pela crença de um presidente – que ninguém leva a sério quando fala em público – em ser respeitado dizendo algumas coisas duras ao ouvido de Hugo Chávez. Luiz Inácio Lula da Silva, que posa de pai da nação, aqui dentro, achou que chamando o presidente venezuelano às falas, a portas fechadas e em telefonemas íntimos, manteria a pose, também, de patriarca da América do Sul.

Lula achou que conteria Chávez com um toque de etiqueta diplomática. Que seria mais respeitado se lutasse pela manutenção da aliança ideológica com Chávez, Morales e afins se cumprisse os deveres de chefe de Estado em segredo. Achou que faria um pacto com o diabo e ninguém perceberia as saliências, ninguém sentiria o cheiro de enxofre. Achou que, bancando o bom vizinho, o bonachão da ideologia, calaria um boquirroto como o presidente venezuelano.

Pressionado pela sociedade, mas convencido de que os erros cometidos – ainda que não assumidos – exigiam algumas explicações públicas ao país, o ministro Celso Amorim sentiu-se na obrigação, na Comissão de Relações Exteriores do Senado, na terça-feira, de tentar um jogo de morde e assopra. Iludido, tal qual o chefe maior e "nosso guia", o chanceler brasileiro adotou a medíocre estratégia das compensações. Amorim disse que Lula, em Puerto Iguazú, havia cobrado de Chávez uma postura mais cooperativa e menos estridente em nome da integração sul-americana. Disse isso para avisar que o governo brasileiro não iria usar a "política do porrete" com os vizinhos, que a nossa praia é a "boa vizinhança", que eles ficassem tranqüilos porque nós compreendemos, aceitamos e agasalhamos expropriações, invasões e o que mais quiserem fazer em nome dos povos pobres e das veias abertas da América Latina.

Disse Amorim aos senadores que Lula transmitiu de "maneira inequívoca" esse "desconforto" provocado por Chávez.

Com razão
Marco Aurélio Garcia, na edição da Folha de S.Paulo de domingo passado, em entrevista a Kennedy Alencar, rebarbou quanto pôde, mas acabou perpetrando, bem no pé da conversa, uma suavíssima frase crítica. Disse que, em certos momentos, o presidente Hugo Chávez tem atitudes que não são "as mais adequadas". Eles, Amorim, Garcia e Lula, acham que Chávez se vende por declarações suaves, acreditam que estão prestando um favor ao caudilho esquerdista venezuelano oferecendo-lhe uma dose de bom senso.

Reparem bem na arquitetura do pito venezuelano:
1) Chávez não reconhece em Amorim e Garcia capacidade crítica autônoma;
2) Chávez acha que os dois, por falta de iniciativa crítica, repetem apenas o que a "imprensa reacionária" anda escrevendo;
3) Chávez sente-se ofendido, e com razão, pelo fato de o governo brasileiro tornar público o que foi dito e cobrado em segredo – a ponto de, na nota oficial do seu Ministério das Relações Exteriores, desmentir que Lula tenha manifestado desconforto com seu jeito de ser, de visitar, falar e se relacionar com o Brasil ou qualquer outro país sul-americano.

É o resultado da política da diplomacia presidencialista em que Lula só cumpre as obrigações de chefe de Estado de noite ou às escondidas. À luz do dia, diante dos microfones e no palanque, vale o Lula companheiro e hermano ideológico. Um dia a casa tinha de cair. Chávez chutou os alicerces. O incrível é que Garcia, sem saber que havia entrado na linha de tiro do presidente venezuelano por causa da entrevista à Folha, desembarcou em Brasília, na quarta-feira, vindo da Argentina, e o que fez? Criticou o que Amorim, o colega dele, havia dito na terça, no Senado.

Amorim havia criticado (levemente, mas muito levemente mesmo) a excessiva interferência de Chávez nos negócios bolivianos. Garcia acha isso "insultante", até "racista" com o companheiro Morales. Então, tá!

Não é bonito?

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