O GLOBO
Quando o presidente Lula, depois de muitos dias de silêncio, resolveu se pronunciar sobre os escândalos envolvendo o governo e, olhando persistentemente para cima no que psicólogos definiram na ocasião como sinal de extremo desconforto, confessou que havia sido traído, ficou a sensação de que caminhava para assumir os erros de seu governo para tentar reorganizá-lo da melhor maneira possível.
Não pediu desculpas ao povo brasileiro, nem indicou quem o traíra, mas parecia disposto a recomeçar. Lá se vão dois meses daquela reunião ministerial, quem presumivelmente o traiu está cada vez mais convencido de sua inocência, e o presidente, ele próprio, também já esqueceu de tudo o que aconteceu.
O deputado José Dirceu admite que ele e o presidente Lula têm "responsabilidade política" sobre os acontecimentos, mas alega que não sabiam das ilegalidades. Essa é uma antiga discussão política. Não foi Getulio Vargas quem ordenou que atirassem em Carlos Lacerda. Mas ele foi acusado, pela oposição da época, de "responsabilidade política" pelo ambiente que levou ao atentado, que resultou na morte do major Rubens Vaz, ao dar autonomia à sua Guarda Pessoal, liderada por Gregório Fortunato.
Assim como Lula e Dirceu são acusados pela oposição de, no mínimo, serem responsáveis pelo clima de permissividade que levou o tesoureiro Delúbio Soares — se é que o fez mesmo sozinho — a se considerar no direito de organizar esse esquema de financiamento ilegal que foi montado. E certamente não foi Delúbio quem estabeleceu as metas a serem atingidas, nem escolheu quem receberia o dinheiro.
Simplesmente ninguém até agora foi punido, a não ser o autor das denúncias que tanto chocaram a opinião pública. A tal ponto que o presidente Lula, o que foi traído e não se dignou a denunciar e punir quem o traiu, já encontra espaço político para dizer com a maior desfaçatez que "o povo precisa ter é apenas cautela, porque o denuncismo ficou solto durante quatro, cinco meses". E ainda fazer ironia com os membros das CPIs, que os partidos de sua base política boicotam desde o início dos trabalhos: "Eu acho que os deputados devem estar com muita dificuldade de apurar a concretude das denúncias feitas".
As mentiras, seguidas de confissões públicas de acordos eleitorais azeitados a dinheiro; os pagamentos na boca do caixa do Banco Rural; o troca-troca de partidos estimulado a partir da Casa Civil, no que parecia uma estratégia política superior e revelou-se, ao final, uma simples compra e venda de consciências; os dólares na cueca, nas malas, pagos em salas ministeriais ou em festinhas em hotéis cinco estrelas em Brasília; o pagamento recebido em contas no exterior pelo publicitário oficial do governo, tudo que caracterizava o esquema de poder montado, de repente virou conto da carochinha.
Num acesso de autocrítica, Lula admitiu que "vivemos momentos, não apenas agora, mas em outros momentos históricos, em que as denúncias aparecem e depois não se concretizam e fica o dito pelo dito, não existe reparação, não existe retratação". Tem razão o presidente. Quem analisar a história pregressa de Lula no comando da oposição nesses últimos 22 anos, verá que acusar sem provas e não pedir desculpas é a prática petista.
Aproveitando que estava anunciando números recordes da economia na Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), que já foi seu alvo preferencial de críticas, Lula fez o mesmo que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na campanha eleitoral de 2002: alertar para o perigo de instabilidade política quando a economia vai tão bem: "(...) Essa é uma coisa que nós trabalhamos com muito cuidado, para não permitir que viesse a criar qualquer problema na economia brasileira".
E assim vai-se armando uma imensa pizza, que parecia improvável há alguns dias, mas vai se tornando real com a participação, mais uma vez direta e explícita, do próprio presidente Lula. A situação do senador Delcídio Amaral, presidente da CPI dos Correios, é exemplar dessa situação promíscua. Delcídio, feito presidente da CPI por indicação do PT, só aceitou a missão depois de conversar com o presidente Lula.
Recentemente, incomodado com situações de política regional no Mato Grosso do Sul, negociou sua ida para o PSDB e, mesmo trocando de partido, pretendia continuar à frente da CPI, o que seria uma ameaça ao governo, além de um claro estelionato político. Mais uma vez o presidente Lula chamou Delcídio ao Palácio, convencendo-o a permanecer no partido com a garantia de que será o candidato a governador em Mato Grosso do Sul. Qual independência tem o senador Delcídio Amaral para levar os trabalhos a bom termo ?
O jogo político está feito, e é inegável que a desorientação dos governistas era só aparente, pois conseguiram superar os momentos críticos nas CPIs, transformando tudo o que já foi apurado em uma grande confusão que não levará a nada. A oposição deixou-se levar por um triunfalismo infantil, como se a candidatura Lula estivesse morta, e agora não sabe o que fazer com o que já apurou e o que falta apurar. Uma falta absoluta de organização faz com que as CPIs atirem em todas as direções e não acertem qualquer alvo.
Enquanto isso, Lula aparece com um piso de 30% do eleitorado, índice que já foi seu teto em eleições passadas, fazendo com que renasça das cinzas como um candidato viável. Perdeu a condição de imbatível, é verdade, e sofrerá ataques de todos os lados. Mas já está armando seu discurso de candidato. Do ponto de vista político, abstraindo-se questões morais ou éticas, vitória do governo.
Entrevista:O Estado inteligente
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