Não estaríamos assim cavando alegremente a própria cova? Pior, fazer troça de tudo, no fundo, não seria a maneira sub-reptícia que inventamos de pedir licença para continuar a cometer os nossos próprios deslizes cotidianos, da conversão em lugar proibido (afinal, o trânsito está impossível) à miúda ou graúda propina ao agente da lei (pois é, não me deixaram alternativa)?
Há muitas vantagens em não se levar inteiramente a sério, em crer descrendo, em ser capaz de extrair riso da desgraça e mesmo graça da tragédia. Essa atitude nos vacina contra os males dos vários fundamentalismos laicos e religiosos, nos faz talvez mais tolerantes à diversidade do mundo e mais resistentes às adversidades da vida (desigualmente distribuídas entre ricos e pobres, como quase tudo neste país).
Mas o que pode ser uma vantagem para enfrentar doenças agudas - uma enchente, um choque financeiro ou uma crise política, que requerem flexibilidade e capacidade de adaptação às circunstâncias - se torna uma desvantagem quando o problema é uma doença crônica, instalada, que nos rouba o presente e o futuro aos poucos. É assim a dilapidação dos recursos e do espaço público no Brasil. Um problema entranhado na alma e no corpo do País. Um problema que não tem a menor graça.
Anos atrás, um grupo de pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas (FGV) buscou medir os custos econômicos da corrupção. Estimou-o em vinte e tantos por cento do PIB, se não me falha a memória. Exercício interessante, mas que não apanha o problema em toda a sua extensão. Primeiro, porque os custos econômicos não são os únicos relevantes numa sociedade. Segundo, porque a corrupção é uma das mais grave, porém não a única violação das regras de um Estado que se queira republicano e democrático.
Cabe pensar sobre os danos que macro e microesquemas de apropriação indevida dos recursos e do espaço público causam às possibilidades de desenvolvimento do País. Não apenas pelas ineficiências econômicas que geram, senão que também pelas possibilidades de cooperação social mais ampla que sufocam.
Tomem-se dois exemplos aparentemente díspares: alguém que paga propina ao fiscal que o achaca, em lugar de denunciá-lo, e outro alguém que veda o muro de casa para não ver o desmazelo da praça em frente, em lugar de se reunir com os vizinhos para encontrar uma solução para o problema. Nem um nem outro está errado, nem se pode condená-los moralmente. Não é difícil, porém, perceber o quanto a sociedade perde quando os indivíduos agem dessa maneira, assim como não é difícil entender por que o fazem.
Em ambos os casos, o comportamento se explica pela mesma razão: a ausência de confiança interpessoal e nas instituições, que leva as pessoas a se entrincheirar na proteção puramente defensiva e geralmente ineficaz de seus interesses individuais (o achaque será cada vez maior e o desmazelo da praça acabará por afetar o valor do imóvel e a qualidade de vida do proprietário).
Não é simples criar ou recriar as bases da confiança interpessoal e nas instituições em que elas estão comprometidas. Existem, contudo, razões para ser otimista, quando se consideram os episódios recentes sob a lente mais ampla do longo processo de democratização iniciado em meados dos anos 1980. Essa perspectiva permite a interpretação de que o mesmo processo que faz aflorar velhas e surgir novas doenças, criadas por novos agentes, é capaz de desvendar as causas da enfermidade e ativar os anticorpos para combatê-la.
Se é verdade que há uma descrença difusa nas instituições, não menos verdade é que algumas delas têm revelado disposição e capacidade para merecer crédito de confiança, como o Ministério Público e a Polícia Federal, por ressalvas que possam ser feitas às atitudes de alguns de seus membros, observação que vale também para a mídia. Nem mesmo o Congresso e os partidos, à exceção das legendas de aluguel, turbinadas pelo próprio governo, podem ser condenados em seu conjunto.
Para confirmar as razões de otimismo será preciso agir em dois sentidos.
De cima para baixo, para reformar as instituições do Estado e do sistema político, sem ilusão quanto a soluções mágicas, mas sem ceder ao mito de que as instituições vão muito bem, obrigado. Pois não vão. O elevado custo financeiro das campanhas, a dificuldade de o eleitor se informar sobre os candidatos e acompanhar o desempenho de seus mandatos, em parte por força do nosso sistema eleitoral, a inexistente fidelidade partidária, a ampla quantidade de cargos de livre provimento na máquina pública e a ausência de mecanismos adequados de valorização do serviço público, todos esses fatores somados representam um obstáculo a ser vencido se quisermos ter democracia e República para valer no Brasil.
De baixo para cima, o desafio consiste em mudar práticas e relações presentes no cotidiano de todos nós, para o que organizações, movimentos e correntes de opinião que se formam na sociedade civil têm um papel-chave, assim como são importantes as atitudes individuais.
Nada é fácil. Mas vale a pena. Senão, restar-nos-á a alternativa de sublimar os desejos de desenvolvimento como sublimamos outros - tanto homens quanto mulheres -, flertando com imagens de um erotismo boboca montadas em programas de computação gráfica. Acho que merecemos e podemos conseguir coisa melhor.