Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 02, 2005

MIRIAM LEITÃO Aos olhos do mundo

o globo

Visto por olhos externos, numa mesma semana, o Brasil caiu e subiu. Pelo World Economic Forum, o país caiu oito posições no ranking de competitividade pelo impacto das notícias de corrupção; pela Unctad, o Brasil subiu na fila dos países que mais recebem investimento estrangeiro. As duas classificações juntas parecem estar nos avisando que o Brasil cresce, mas a qualidade do crescimento está em queda.
O curioso da contradição entre as duas listas é que elas estão falando da mesma coisa, só que uma tem valores numéricos e a outra, valores subjetivos. A Unctad fez a conta do investimento direto recebido em cada país no ano passado. Isso não parece ter muita discussão. São apenas números. Mas, infelizmente, no nosso caso, cabe, sim, um abatimento. No ano passado, o número do IDE (Investimento Direto Estrangeiro) foi engordado, em parte, por uma única transação, que não significou exatamente entrada de dinheiro no país para criar riqueza e empregos. A Interbrew comprou a AmBev; parte dos dados é apenas espuma dessa operação. Se for abatida do número total recebido pelo país, o Brasil cairia no ranking para abaixo de México, Cingapura e Rússia e, em relação ao nosso passado, ficaria mais baixo do que o dado de 2002 quando, apesar das dúvidas eleitorais, o dólar forte atraiu muita entrada de capital.


O curioso no ranking do World Economic Forum é que o Brasil cai na classificação de competitividade quando todos os indicadores macroeconômicos melhoraram, o país está às vésperas de ser promovido pelas agências de risco, exporta como nunca e conquista novos mercados. O fator que entrou na conta não pertence ao mundo da economia, mas tem efeito direto sobre ele: a confiança nas instituições. A atual onda de escândalos políticos trouxe de volta o espectro de um país com corrupção endêmica. Fatos isolados existem em todos os países e está aí Tom DeLay, o ex-líder do governo Bush na Câmara, que não deixa ninguém mentir. Mas os que se passaram aqui são de outra magnitude. Não é o comportamento inadequado de um líder político, mas práticas ilegais do partido do governo, relações promíscuas entre governo e partido, padrões éticos inaceitáveis. Houve um momento em que parecia que a indignação dos brasileiros seria mais forte que o corporativismo e o impulso do acobertamento. Mas os pizzaiolos estão em plena atividade, como se vê na lista dos que comemoraram a vitória de Aldo Rebelo, na demora para algumas providências das CPIs e, principalmente, na abertura generosa dos cofres públicos para irrigar os votos recebidos por Rebelo. O dinheiro irrigado não discriminou sequer o ex-deputado que renunciou para fugir à punição ou o que foi cassado ou mesmo o ex-presidente da Câmara afastado por corrupção. "Ganhamos", disse Severino Cavalcanti, já com seu broche de deputado de volta à lapela.

A economia tem demonstrado capacidade de se manter estável na crise porque muitas mudanças foram feitas ao longo de duas décadas. Mudanças difíceis de fazer, que exigiram trabalho duro de governo, setor privado, consumidores. Para saber por que a economia vai bem no meio de uma tempestade política é preciso recuar no tempo e contar a história dos avanços: abertura, estabilização, avanços fiscais, aumento da eficiência das empresas, saneamento financeiro, adoção dos valores da estabilidade econômica e responsabilidade fiscal, que empurrou forças políticas diferentes para uma mesma agenda. Velhos acertos nos trouxeram até aqui.

Não existem compartimentos estanques dentro de um país. Um prefeito de uma cidade onde a qualidade de vida tem piorado, em parte por falta de regras e de respeito à lei, que trata com displicência a construção ilegal ou um presidente que, diante da ilegalidade cometida por seu partido, diz que a ilegalidade é feita "sistematicamente" estão alimentando o pessimismo em relação à pior imagem do país. Ambos confirmam o estereótipo do qual o Brasil tem que se livrar: de um país não muito sério, onde as regras não são para valer e não são para todos, onde obscuras propostas podem ser feitas a um fornecedor do setor público.

A semana passada mostrou esta dualidade, de um país com bons indicadores macroeconômicos que poderia estar pavimentando a estrada para o crescimento, mas que é palco de fatos desconcertantes. A austeridade fiscal saiu de férias e, em seu lugar, assumiu o jogo do vale-tudo para ganhar a eleição da Câmara.

Há cenas emblemáticas: a do ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento, com seus cabelos tingidos de acaju, pedindo votos para Aldo Rebelo e o caixa cheio de recursos da Cide e do Orçamento.

A alegria do governo ao vencer por margem tão apertada seria normal não fosse a esfuziante comemoração de todos os deputados que estiveram na fila do dinheiro de Marcos Valério. A única leitura possível é que o governo trocou promessas de indulgências pelos votos para seu candidato. O Brasil sobe em algumas classificações porque tem lutado há vinte anos para organizar a economia. Ainda há muito a fazer para se atingir esse objetivo. Ao mesmo tempo, o país cai em outras classificações pelo avanço de velhos defeitos. Se o Brasil vira o país do "É ilegal. E daí?", tudo poderá nos acontecer, menos o progresso.

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