O historiador americano Henry Brook Adams cunhou a definição de prática política como sendo a arte de "ignorar fatos", especialidade em que os governistas vêm se especializando nos últimos tempos, especialmente o presidente Lula. Ele ignora as várias derrotas de sua política externa, para exibi-la como uma vitória transformadora de seu governo.
Agora mesmo, ao dizer que não há país mais democrático do que a Venezuela do seu companheiro Hugo Chávez, Lula não fez mais do que repetir o dramaturgo Nelson Rodrigues que, atualizando a máxima de Brook Adams, definiu: "Se os fatos não combinam com minha visão, pior para os fatos".
Essa seria, no entanto, apenas uma ignorância a mais do nosso presidente se não explicitasse uma perigosa visão de democracia com a qual ele volta e meia flerta. A democracia plebiscitária e direta com a qual Chávez manipula os poderes constituídos e divide a sociedade venezuelana. Lula volta e meia dá demonstrações de que não leva muito a sério a liturgia do cargo. Seja quando admite como normal o uso de caixa dois nas eleições, seja quando recebe em seu palanque o líder dos sem-terra José Rainha que, segundo o próprio presidente, "de vez em quando é preso mas é meu amigo".
No terreno dos conceitos sobre política, o pragmático filósofo comunista G.V. Plekhanov, ativista político russo morto em 1918, logo depois de ver vitoriosa a Revolução Russa, pode ser uma boa citação no momento em que chega à Presidência da Câmara o deputado Aldo Rebelo, alcançando o mais alto posto a que um membro do PCdoB já atingiu na história do Brasil, como festeja o site do partido. Disse Plekhanov: "Política necessita uma mente flexível, por isso não existem regras imutáveis ou eternas. Elas levam a derrotas inevitáveis".
Foi mais ou menos o que disse Aldo Rebelo logo depois de eleito, querendo mudar as regras eleitorais para o próximo pleito, cumprindo assim um acordo tácito com os partidos do mensalão — PL, PP e PTB — que ajudaram na sua eleição em troca do fim da cláusula de barreira, entre outros favores. Aldo Rebelo, com aquela cara séria com que ele diz a maior platitude, garantiu que tal mudança fora do prazo da legislação não seria um casuísmo. "Só seria casuísmo se a mudança interferisse nos resultados da eleição". Como não interfere se, livres da cláusula de barreira, os partidos não terão de fazer acordos políticos adicionais para se enquadrar na legislação? E seus filiados, que teriam de fazer um esforço extra de militância e convencimento para ajudar os partidos a melhorar seu desempenho, não teriam uma atuação diferente na campanha?
A sucessão na Câmara, por sinal, serviu para que uma série de afirmações políticas completamente sem sentido fossem proferidas, com ares de verdade absoluta, como por exemplo essa frase que está no site do PCdoB para explicar a vitória de seu representante: o confronto entre direita e esquerda teria ficado claro na "(...) polarização entre o bloco PSDB/PFL, que apoiou o deputado pefelista pernambucano José Thomaz Nonô, contra o candidato das forças democráticas, progressistas e patrióticas, representadas por Aldo Rebelo". Quer dizer, PP, PL e PTB, os partidos do mensalão, representam agora as "forças democráticas, progressistas e patrióticas" do país.
É certo que o candidato Aldo Rebelo não recebeu a totalidade dos votos desses partidos, mas isso não prova, como alegam os governistas, que não tenham sido cooptados pelo governo com verbas e outros favores. Quer dizer, simplesmente, que esses pequenos partidos não são confiáveis, e continuarão chantageando o governo, sempre atrás de vantagens, e não entregando toda a mercadoria que prometem, prontos para a traição.
É por essas e outras que um pequeno livro, que faz o maior sucesso nos Estados Unidos e que está sendo lançado aqui no Brasil, pode ser uma leitura útil nos nossos dias. "On Bullshit", do filósofo americano Harry G. Frankfurt, chega ao país com o título "Sobre falar merda", que soa um pouco mais grosseiro no nosso idioma mas não menos verdadeiro. Frankfurt analisa o discurso político e diz que um dos traços mais notáveis da nossa cultura moderna é que "se fale tanta merda". Ele vai ao ponto que nos interessa: "As áreas da propaganda e das relações públicas e, hoje em dia, a intimamente ligada área da política estão repletas de exemplos tão consumados de falar merda que podem servir como os paradigmas mais inquestionáveis e clássicos do conceito".
E por que os políticos se tornaram "faladores de merda" profissionais? Harry Frankfurt tem uma teoria: "É inevitável falar merda toda vez que as circunstâncias exijam de alguém falar sem saber o que está dizendo. (...) Essa discrepância é comum na vida pública, em que os indivíduos são com freqüência compelidos a falar sobre questões em que são até certo ponto ignorantes". Temos visto muito disso ultimamente, principalmente nos discursos de algumas autoridades e em muitas sessões das CPIs.
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Com relação à possibilidade de anulação de uma eleição majoritária pela incidência de maioria absoluta de votos nulos, um parecer do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Sepúlveda Pertence, descoberto pelo deputado Miro Teixeira, esclarece a questão. Ao recusar provimento ao recurso ordinário em mandado de segurança número 23.234, Pertence definiu que o artigo 77, inciso 2, da Constituição federal, "ao definir a maioria absoluta, trata de estabelecer critério para a proclamação do eleito, no primeiro turno das eleições majoritárias a ela sujeitas; mas, é óbvio, não se cogita de proclamação de resultado eleitoral antes de verificada a validade das eleições".
E, afirma Pertence, "sobre a validade da eleição, pressuposto da proclamação do seu resultado, é que versa o artigo 224 do Código Eleitoral, ao reclamar, sob pena da renovação do pleito, que a maioria absoluta dos votos não seja de votos nulos".