Entrevista:O Estado inteligente
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domingo, outubro 02, 2005
Lula extingue direito da sociedade ao otimismo JOSIAS DE SOUZA
FOLHA DE S PAULO
A oposição reclama da interferência do Palácio do Planalto na eleição do novo presidente da Câmara. Mas tudo se passou dentro da lei. Lula e seus ministros guiaram-se por duas leis muito acionadas em gestões anteriores: a lei do mais forte e a lei da selva. No passado, quando queria humilhar o Congresso, o Executivo fechava-o. De uns tempos para cá, compra-o.
O primeiro Parlamento brasileiro, a Assembléia Constituinte convocada por dom Pedro 1º à época da Independência, durou só seis meses. O imperador fechou-o em novembro de 1823. Alegou que os parlamentares negligenciaram o juramento solene de "salvar o Brasil".
O Congresso seria fechado outras seis vezes: em novembro de 1891, sob Deodoro; em novembro de 1930, sob Getúlio; em novembro de 1937, de novo sob Getúlio; em outubro de 1966, sob Castelo; em dezembro de 1968, sob Costa e Silva; e em abril de 1977, sob Geisel.
Inaugurada em 1985 pelo atalho do Colégio Eleitoral, a redemocratização injetou na cena política brasileira uma novidade supostamente alvissareira. O Congresso emergiria do jejum imposto pela ditadura para um banquete de poderes inaudito. Grossa ilusão.
Num processo iniciado na presidência de Sarney, azeitado na gestão de Collor/Itamar, mantido na administração FHC e exacerbado na República sindicalista de Lula, o Executivo vem prevalecendo sobre o Legislativo graças ao suborno.
A armaria foi substituída pela pecúnia. Assim como o fuzil e a metralhadora, o dinheiro também faz calar. Fala mais alto do que a consciência de muitos parlamentares. Voltou a falar grosso na última quarta-feira.
O dinheiro não é tudo. Há também as emendas orçamentárias e os cargos na administração federal. É um arsenal menos ostensivo e mais silencioso. Mas também tem alto poder de destruição. Rói as arcas do Tesouro.
Carcome também os pilares de uma democracia representativa em que o eleitor se sente cada vez menos representado. Compram-se parlamentares como se arrematam bananas na xepa. As cuias do Congresso, uma emborcada para baixo, a outra para cima, foram reduzidas a templos de trambiques.
Esparramada na vastidão de seus 185 mil metros quadrados, a cidade escondida no interior do prédio de Niemeyer -dotada de regulamentos e orçamento próprios, polícia particular, salões de beleza, agências bancárias e restaurantes- tornou-se uma Chicago entregue aos caprichos de Al Capone.
A perversão é escorada num vocábulo pomposo: governabilidade. Trata-se na verdade de um eufemismo usado para esconder outra palavra reles: safadeza. A pretexto de compor maiorias, os presidentes apostam o próprio patrimônio eleitoral em negociações com agrupamentos suspeito$ do Congresso.
A gritaria da oposição está impregnada de oportunismo. PSDB e PFL, hoje em cima do caixote, eram governo até ontem. Deram suporte a FHC, que justificava as concessões ao rebotalho invocando a "ética da responsabilidade" de Weber. Sem a mesma erudição, Lula exime-se de teorizar sobre a devassidão. Limita-se a levá-la a um paroxismo escarnecedor.
Houve quem ousasse enxergar na erupção de lama que engolfa o Congresso e o Planalto um fenômeno benigno. Imaginou-se que o escândalo do "mensalão" funcionaria como um marco redentor da política. A corrupção seria punida e o sistema se endireitaria. Bobagem.
O país já experimentara sensações semelhantes à época do Collorgate. Dizia-se que a depravação atingira níveis tais que os políticos jamais incorreriam nos mesmos equívocos. Seguiu-se um aluvião de escândalos -"anões do Orçamento", Sudam, máfia das subprefeituras de São Paulo, megadesvios da dupla Maluf/Pitta e um interminável etc.
Com as pegadas do "mensalão" e do "mensalinho" ainda gravadas no mármore do Planalto e no carpete dos salões do Congresso, Lula reincide no delito. Para acomodar Aldo Rebelo no lugar de Severino Cavalcanti submeteu-se, uma vez mais, às chantagens dos "aliados". Espetou mais um prego no esquife em que seu governo se encontra estirado há quase quatro meses.
Lula já não pode posar de cego. Envolveu-se pessoalmente na refrega da semana passada. Reuniu-se com ministros. Despachou-os ao Congresso. Recebido em Palácio, Valdemar Costa Neto, primeiro a renunciar para fugir à cassação, teve emendas liberadas. José Janene, na fila do patíbulo, recebeu efusivos cumprimentos pela mãozinha dada ao governo. Severino Cavalcanti, convidado ilustre de uma solenidade palaciana, festejou a eleição de Aldo Rebelo. É outro beneficiário da última leva de liberações de emendas.
O diabo é que o festival de constrangimentos, longe de assegurar tranqüilidade ao governo no Congresso, apenas reforçou as linhas do círculo vicioso. Ao render tributos à chantagem, Lula sinalizou aos chantagistas que está disposto a conceder mais e mais.
É uma pena. Aldo Rebelo, um político honrado, não merecia o constrangimento de um triunfo sujo enganchado em sua biografia. Uma derrota imaculada o dignificaria mais. A sociedade tampouco merecia ser privada do direito ao exercício do otimismo. Para um presidente que se pretendia reformador dos costumes, Lula banha-se no pântano com acintosa naturalidade.
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