O País ficou mais corrupto porque parou de crescer e no momento somos um povo sem futuro, adverte Villa
Gabriel Manzano Filho
"Essas ilusões tão brasileiras... adiar conflitos, resolver pela metade e acreditar que somos muito espertos... é disso que a corrupção gosta", constata o historiador Marco Antonio Villa. E a corrupção cresce, segundo ele, porque o País não tem um projeto nacional e o brasileiro é, hoje, um povo sem futuro. "É preciso fazer a revolução burguesa que devia ter acontecido em 1985", diz Villa, 50 anos e intermináveis histórias, no seu quarto de estantes entulhadas na zona norte de São Paulo, onde ostenta, com orgulho, um enorme distintivo do Santos FC na tela do computador.
Mensalão, mensalinho, severinos, valdemares, juiz de futebol fraudando resultados, policial roubando dinheiro na própria delegacia – nada surpreende esse paulista falador, que vive correndo entre sua casa e a Universidade Federal de São Carlos, onde ensina a história do Brasil. Como surpreender? Villa é um garimpeiro escolado, tromba com corrupção a toda hora em suas andanças chafurdando em papéis velhos. "Documentos somem, catálogos apodrecem, bibliotecas fecham em hora de trabalho e ninguém cobra. Parodiando Euclides da Cunha, o pesquisador é antes de tudo um forte", conclui. Do alto (ou do fundo?) de seus 15 livros – o mais recente, muito bem-sucedido, foi uma biografia do ex-presidente João Goulart – ele mal espera o fim da primeira pergunta para reafirmar: "A corrupção é a grande constante dos 116 anos da história republicana".
O País respira escândalos há três meses, o governo negocia verbas e votos com desenvoltura, deputados caminham para a cassação, juízes de futebol confessam fraudes, policiais roubam milhões dentro da Polícia Federal... Somos o país do mar de lama?
Quem atentar bem para a nossa história verá que a corrupção é uma constante. Logo após o golpe militar de novembro de 1889 – a tal proclamação da República –, durante o Governo Provisório, começou o Encilhamento, período marcado pela especulação financeira, de fortunas que nasceram da noite para o dia. Os banqueiros estabeleceram relações pouco republicanas com os novos donos do poder. A circulação do mil-réis quadruplicou em pouco mais de um ano e os pobres pagaram a conta.
E depois disso?
Mal se instalou o novo regime e os jornais se encheram de denúncias. Uma delas estabelecia a relação perigosa entre o secretário de Deodoro da Fonseca, seu sobrinho Fonseca Hermes, e os banqueiros. Hermes foi acusado de falsificar uma ata de uma reunião do Governo Provisório que concedia favores ao banqueiro Barão de Mesquita. O sobrinho predileto transformou-se em figura poderosa no governo, tanto que quando do seu aniversário, em 1890, a lista de presentes que recebeu ocupou toda uma coluna do jornal Cidade do Rio. Na lista havia canetas de ouro, alfinetes de gravata com brilhantes, relógios e bengalas adornadas com prata e inúmeros objetos com ouro, prata e diamantes. Os presentes foram avaliados em 40 mil-réis, uma fortuna para a época. Esse tráfico de influências marcou a vida republicana, como uma espécie de valor às avessas, que deixaria um Catão envergonhado.
Por que isso se implantou e durou tanto tempo?
O modus operandi imposto pela República foi marcado pela supremacia do interesse privado sobre o interesse público. Criamos uma forma particular de República, em que res publica (coisa pública, em latim) passou a significar coisa privada. O comportamento privatista do Estado criou uma sociedade de espertos.
Os chefões se beneficiavam
Um dos primeiros decretos do Marechal Deodoro foi duplicar os soldos dos militares. E ele fez questão de explicar, nos considerandos, que não era um pagamento pela proclamação da República!
Essa corrupção não era combatida?
Era um tempo de grandes investimentos, concessões para ferrovias, portos, e um grupo de empresas já vivia à custa desses contratos do Estado. Uma figura famosa na época, Percival Farcoar, foi um empresário presente em negócios no Contestado, na Madeira-Mamoré, sempre envolvido com dinheiro público. Não era um esquema de grandes escândalos, mas de uso sistemático da máquina de Estado por um pequeno grupo.
Nada mudou com a ascensão de Getúlio Vargas
Você tem no Estado Novo, por exemplo, um mecanismo de tarifas de importação em que cada produto tinha uma cotação de câmbio diferente. Dependendo do que se importava, havia benefícios aqui e ali, isenções. Criou-se uma confusa malha de interesses, que foram permanecendo. Grandes estatais foram criadas de uma forma que abria espaço para a corrupção.
Getúlio percebia, ou se beneficiava disso?[/PERGUNTA] Não seria historicamente rigoroso dizer isso. Quando ele foi derrubado, a 29 de outubro de 1945, nem tinha casa para morar. Foi morar na casa do irmão, Protásio, a contragosto, porque a cunhada não gostava do charuto, das cinzas no chão; ele constrói uma pequena casa na Estância do Itu, onde vive de forma austera. Mas, certamente, grandes grupos de empresários se beneficiaram, com a modernização do Estado e o crescimento do País.
Em 64 a corrupção foi um dos argumentos dos militares para derrubar o governo..
. Nos 20 anos de regime militar muitos oficiais, na ativa ou na reserva, ocupam altos postos nas estatais. Eletrobrás, Nuclebrás, Cibrazem, Furnas... Eles vão gostando, montam serviços de informação até em secretarias e governos estaduais. Ministro do Exército tinha mansão em Brasília. Um deles, o general Orlando Geisel, gostou tanto da mansão que tentou continuar ministro quando seu irmão Ernesto virou presidente. O irmão recusou, ele teve de sair. Mas não esqueçamos das jogadas na Bolsa nos anos 70, dos casos Delfim, Coroa-Brastel.
Hoje a esquerda está no poder e o País está como está. Ela não é alternativa para romper esse ciclo?
A corrupção está além de esquerda ou direita, é uma questão de ética republicana. Não adianta ficar dizendo que a direita é corrupta e que a esquerda veio para limpar a vida pública. O PT desenvolveu uma práxis política que pouco diferia da dos partidos tradicionais. O que representava o novo logo se amoldou ao velho. Quando denunciado, o PT acusou a elite de querer desconstruir o partido.
Mas a Polícia Federal está prendendo. Paulo Maluf está há três semanas na cadeia. Os erros do PT tornaram-se públicos. José Genoino está isolado e deprimido, José Dirceu está batalhando para sobreviver, haverá algumas cassações. É um sinal de que as coisas vão mudar?
Há um bom trabalho do Ministério Público, que foi a melhor coisa da Constituição de 88. Mas o que exige o interesse público não é só cadeia, é que voltem para os cofres públicos os recursos roubados. Isso não aconteceu nos tempos de Collor nem com os anões do Orçamento em 1994. Está longe de acontecer agora. Maluf, por exemplo, teria de doar seu dinheiro para a Santa Casa, como prometeu. A Santa Casa ia virar o maior hospital das Américas.
Mas tem muita gente investigando, denunciando, processando. Dará para reduzir a corrupção?
Investigar, denunciar e até prender é um grande passo, mas não completa o serviço. É preciso fazer entrar no cotidiano do cidadão a idéia de que o pequeno delito também será punido. Essa pequena corrupção é um problema imenso, porque a impunidade da grande corrupção funciona como licença a ela. O sujeito pensa: se o rico rouba impunemente R$ 1 milhão, não acontece nada se eu não der nota fiscal ou se der R$ 10 para o guarda não multar meu carro. [PERGUNTA]Como se pode acabar com essa pequena corrupção?
É preciso criar novos instrumentos. Instalar ouvidorias no serviço público, no bairro. Coisas de fácil acesso, para tornar a queixa e a cobrança uma rotina. Construir esses mecanismos de transparência é uma tarefa urgente, que ainda está no zero. O cidadão não se habitua a protestar porque não tem quem o ouça. A grande ouvidoria do povo brasileiro, hoje, é a imprensa, E por quê? Porque o Estado não tem ouvidos.
A corrupção mostra-se dinâmica, adapta-se rapidamente a tudo...
Pois é, a modernização do capitalismo significa, também, modernização da corrupção. Veja a dificuldade que a CPI dos Correios tem para descobrir a fonte dos recursos investigados. Não que Gustavo Fruet não queira. O fato é que ele tem nas mãos centenas de contas que vão se relacionando, mas não acha o nascedouro, o fio da meada. Outro exemplo: ainda hoje não se sabe onde ficou o dinheiro do esquema PC. Claro que está em algum lugar, ao qual alguém tem acesso.
Como o Estado poderia queimar etapas?
Nosso problema é que quem devia cuidar do problema, no Estado, não cuida – no caso, o Tribunal de Contas da União. O TCU é a aposentadoria com que todos sonham. Cargo vitalício, salário generoso, muitos assessores. E cada Estado tem o seu TC. A Prefeitura de São Paulo também criou um e já está sendo imitada. Uma das tarefas democráticas devia ser fechar esses tribunais e vincular os seus auditores ao Congresso, às assembléias estaduais e câmaras municipais. Eles passariam a dar assessoria a senadores, deputados e vereadores na tarefa de controlar o dinheiro público. Ninguém tem coragem de mexer nisso.
Há alguma saída?
Sim. E não é voltar a um regime autoritário nem continuar como está. A saída é concluir a revolução burguesa no Brasil. Realizar a transição da ditadura para o poder civil, que não foi feita em 1985. Essas transições no País são muito lentas. O Brasil vive de espasmos, e hoje vivemos um, que foi criado por uma figura do próprio sistema, Roberto Jefferson. Ela entrou para a História.
Se aparecessem mais uns dez Jeffersons, o País consertava?
Ficaríamos sabendo de muito mais coisa, mas ainda não basta. O que o País precisa mesmo é de um projeto nacional. A corrupção só alcançou tamanha intensidade porque o País parou de crescer. Tivemos fases de corrupção em que o País crescia a 5%, 7% e até 11% ao ano. Hoje a economia está estagnada há 20 anos, o impacto disso é enorme nos costumes. O cidadão fica agoniado, ao ver sua vida parada, seu filho desempregado. Viramos um País sem perspectiva, onde se inveja o amigo ou parente que está no Exterior. Um sujeito que se dispõe a lavar pratos nos Estados Unidos já está semipronto para aceitar alguma corrupção para ficar aqui. Somos um povo sem futuro no curto prazo.
Então o País fica mais corrupto por não ter esse projeto?
Sim. Nosso último projeto nacional foi lá pelo início do regime militar. Hoje o País não sabe para onde vai dentro de 10 ou 20 anos. Aliás, não sabe para onde vai amanhã. A Índia tem um projeto nacional, a China tem o seu, a Coréia também. Eles sabem para onde vão, independentemente de pequenos roubos e fraudes aqui e ali.
Por que não temos esse projeto?
Porque a elite, após a democratização, não o construiu. É que, na volta do poder civil, ocorreu também um avanço do neoliberalismo, que desqualificou essa idéia de projeto nacional dizendo que, num mundo globalizado, isso era bobagem. Foi um equívoco. É claro que o País tem de se inserir no mundo globalizado, mas tem de fazer isso dentro de um projeto nacional. Essa elite de hoje não tem ousadia. Está na hora de dar um grito de alerta. O México já passou nossa economia, o Chile está mais moderno. Nas eleições de 2006, ou damos um brado de independência, ou estaremos condenados a ser um país de segunda. Lá na frente não haverá mais espaço na cena internacional.