Em sua rudimentar exorbitância do exercício do poder recentemente adquirido, o presidente da Câmara fez um grande favor ao presidente da República, e esta foi a primeira constatação que se fez ontem pela manhã em Brasília, quando ainda nem era oficial a notícia de que a chamada reforma ministerial estava cancelada.
Numa frase – “ou teremos ministro das Comunicações ou tomaremos posição diferente” –, Severino Cavalcanti conseguiu resumir todas as suas e as outras vilanias a que tantos se expuseram durante tanto tempo no acelerado processo de degradação moral instalado nas relações entre partidos, políticos e instituições.
Mais que possível, é bastante provável que o presidente Luiz Inácio da Silva tenha se dado conta de que caminhava célere ele mesmo para a desmoralização pessoal e do cargo que ocupa e resolvido, por impossibilidade de fazer outra coisa, dar ouvidos àqueles que há algum tempo perceberam a urgência de se elevar os padrões de atuação do Governo.
Ao afrontar a ética, tecendo loas ao nepotismo, e desafiar a autoridade presidencial, pretendendo usurpar-lhe a prerrogativa de escolher ministros, Severino acabou deixando Lula sem alternativa.
Os efeitos colaterais da suspensão dos trabalhos à primeira vista não foram negativos.
Lula evitou nomear ministros com folha corrida, ficou com Aldo Rebelo da Coordenação Política – hábil, civilizado e sobretudo alfabetizado –, livrou-se (por enquanto) da obrigação de encaixar na equipe a senadora Roseana para atender ao senador Sarney.
O presidente eximiu-se de premiar com ministério o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha, cuja insistência em reeleger-se para o cargo resultou nefasta para o Governo e o PT, pôde manter a excelência na área econômica, preenchendo o Ministério do Planejamento com um político, deputado Paulo Bernardo, no padrão Palocci de qualidade.
Pagou uma única conta, ao presidente do Senado, Renan Calheiros, dando a Previdência ao senador Romero Jucá.
Mas, mesmo aí, deu com uma mão e retirou com a outra: na véspera iniciara uma nova fase de relacionamento com o PMDB, abrindo interlocução com a ala oposicionista em moldes diferentes daqueles estabelecidos com Calheiros e Sarney, de conotação meramente fisiológica.
As coisas postas assim podem dar a impressão de que o presidente Lula saiu-se, ao fim e ao cabo, vitorioso e que, talvez, quisesse tudo isso desde o começo. Bem, esta deve ser a versão a posteriori a ser difundida pelo Palácio do Planalto.
Mas não é verdadeira pela óbvia distância que guarda da realidade. Haveria até sentido em enquadrar o presidente Lula em moldura de grande estrategista, não tivesse ele sido em larguíssima medida responsável pela situação em curso e não estivesse agora pagando por ela um alto preço.
Não fez reforma alguma, mas deixou o País parado à espera de uma semanas a fio. Vitorioso seria se tivesse conseguido fazer as mudanças alegadamente necessárias e ainda posto a tropa do fisiologismo em seu devido lugar.
Mas não, deu acesso, abriu espaço, jamais impôs reparos (a não ser quando os interesses do Planalto eram contrariados) a tratativas de natureza subalterna e, não raro, participou direta e publicamente delas.
Convenhamos, Severino é tosco, mas – até prova em contrário – não é louco. Se falou da maneira como falou com o presidente da República foi porque sentiu que o ambiente permitia.
Sua eleição já havia sido resultado de uma série de deformações de valores que redundou no império do vale-tudo instalado nas relações político-institucionais em toda a sua inteireza no Governo do PT.
O estrategista da degenerescência, o chefe da Casa Civil, José Dirceu, conseguiu imprimir seu modelo de cartilha: todo mundo tem seu preço, com o poder compra-se qualquer um, aos resistentes, basta impor a pecha de golpistas e, de um modo geral, conquista-se reverência fazendo cara de mau e constrangendo o adversário com meia dúzia de gritos bem engendrados junto a um esquema de comunicação sempre disposto a anunciar sua iminente volta à condição de Rei Sol.
Todo esse sistema de desvalorização explícita dos partidos, se tinha a intenção de fazer o PT sobressair-se como a reserva moral da nação e, portanto, merecedora da perpetuação no poder, deu errado.
O PT enlameou-se junto, perdeu a majestade moral e, nesse ritmo, acabaria indo junto a reputação do presidente Lula. Teria ele percebido – ou sido alertado – disso agora, ante à dantesca cena de Severino Cavalcanti bradando exigências, expondo um retrato sem retoques do que são as relações entre o Governo e sua base parlamentar?
Sim, porque se o que atualmente se diz em público é assustador, imagine o leitor como devem ser os termos das conversas em particular.
Estamos, pois, indubitavelmente no fundo do poço em matéria de procedimentos, como de resto muita gente próxima – as mentalmente saudáveis, claro – ao presidente já havia notado.
Desse episódio, queira o bom senso não se lhe imponham obstáculos, Lula poderá fazer o marco da correção dos padrões até agora adotados, a mola posta no fundo do poço à qual convencionou-se atribuir a recuperação de situações políticas aparentemente perdidas.
Entrevista:O Estado inteligente
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