Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 26, 2005

VEJA on-line-Roberto Pompeu de Toledo: Defensores da vida,anjos da morte


W. Bush e um bispo argentino
protagonizam casos que ilustram
as confusões de nosso tempo


O presidente George W. Bush e o bispo argentino Antonio Baseotto não se conhecem, habitam extremos opostos das Américas e cultuam religiões diferentes, mas têm algo decisivo em comum. Ambos filhotes do fundamentalismo, proclamam-se "a favor da vida", para recorrer à expressão de que se apropriaram os adversários do aborto e da eutanásia, mas na folha corrida de um, bem como na retórica de outro, ressalta um fundo de militância em favor da morte. Bush fez voltar à memória sua ambigüidade na questão da vida e da morte ao meter-se no doloroso caso de Terri Schiavo, a mulher tornada célebre pela briga em torno do desligamento dos aparelhos que a mantêm viva. Dom Antonio Baseotto, bispo militar da Argentina, ou seja, o capelão-mor das Forças Armadas, destacou-se – e perdeu o cargo – pela declaração de que o ministro da Saúde do governo Kirchner, Ginés González García, mereceria, por suas posições a favor da liberalização do aborto e suas políticas de distribuição de preservativos, "que lhe amarrassem uma pedra no pescoço e o jogassem ao mar".

Primeiro, o caso de Bush. No domingo 20, ele interrompeu as férias no Texas e voltou com estardalhaço a Washington. Tinha-se engendrado um artifício pelo qual talvez se pudesse reverter a decisão do juiz da Flórida que, atendendo aos reclamos do marido de Terri Schiavo, determinara o desligamento dos aparelhos. O Congresso votaria, na segunda-feira, uma lei possibilitando que o caso fosse remetido à Justiça federal, e Bush queria estar presente para, logo em seguida, assinar a lei. O presidente não perderia uma oportunidade dessas. A direita religiosa, da qual é o queridinho, estava assanhada, promovendo rezas e vigílias pela religação dos aparelhos.

A lei foi aprovada pelo Congresso e assinada por Bush, o que mostra a força do fundamentalismo nos Estados Unidos, mesmo quando à custa de um princípio sagrado, no país, que é a independência dos estados federados. Mas não é isso o que importa aqui, nem o desfecho do caso. Importa a declaração de Bush, ao desembarcar em Washington: "Em casos como esse, nos quais há sérias questões e dúvidas substanciais, nossa sociedade, nossas leis e nossas cortes deveriam observar uma presunção em favor da vida".

Quanta ironia, na frase, vinda de quem veio... Havia "sérias questões e dúvidas substanciais" na decisão de atacar o Iraque, tanto assim que a comunidade internacional a rejeitou. Mas a opção de Bush foi por uma empreitada militar que já causou mais de 1.500 mortes de americanos, 200 de aliados e, de iraquianos, sabe-se lá quantas – talvez 100.000. A presunção foi pela morte. Igualmente, há "sérias questões e dúvidas substanciais" não só quanto ao conceito de pena de morte em si, como em sua aplicação particular em muitos casos. Nos últimos trinta anos, enquanto 956 condenados eram executados nos EUA, 119 foram retirados do corredor da morte porque à última hora provaram sua inocência. Quantos foram executados apesar de inocentes? Não é possível saber, porque os tribunais não julgam casos post mortem. Bush, porém, quando governador do Texas, não tinha dúvidas. Deixou morrer todos os 152 condenados cujo último recurso lhe chegou às mãos – um recorde. Sua opção foi, clara e consistente, ainda aqui, pela morte.

Agora, o bispo Baseotto. Sua declaração, formulada por escrito (por escrito!), não choca apenas por um religioso rogar uma praga de morte contra alguém. Choca mais pelo tipo de morte que ele escolheu, uma modalidade patenteada pelos militares da ditadura argentina. Que deu no bispo? Que infeliz impulso levou-o a evocar um tipo de execução de que os militares tantas vezes, e tão sinistramente, lançaram mão, contra os opositores do regime? Não deu nada. O jornal Página 12 foi pesquisar-lhe a vida pregressa e descobriu que ele é assim mesmo, dado a destampatórios fanáticos e discriminatórios. Num discurso de 1986, a vítima foram os judeus. Segundo Baseotto, eles querem enriquecer, não importa por que meio: "Se a pornografia é bom negócio, vendem pornografia. E, se a droga é bom negócio, vendem droga".

O bispo acabou demitido por Kirchner. Na Argentina, onde o catolicismo é religião do Estado, o bispo militar é escolhido de comum acordo entre o governo e o Vaticano, e seu salário é pago pelo governo. O Vaticano, porém – espantosamente –, ficou a seu lado. O presidente do Conselho Pontifício para Justiça e Paz, cardeal Renato Martino, expressou sua admiração pelas "valentes e contundentes" posições de dom Baseotto. E o porta-voz do Vaticano, Joaquín Navarro-Valls, chamou a decisão de Kirchner de "violação da liberdade religiosa".

Tempos de confusão, estes nossos. Que é defender a vida? Que é defender a morte? Os que dizem defender a vida, no aborto ou na eutanásia, não mostram o mesmo empenho quando se trata de condenar as guerras, a repressão abusiva, a discriminação, as punições extremas. O disfarce de defensor da vida, não poucas vezes, esconde anjos da morte.

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