As origens, o perfil e a obra de um novo e
marcante personagem da vida nacional
Acorda, leitor. Olha para os lados, leitora. O cachaceiro de João Alfredo, eis a nova realidade que só não vê quem não quer, está em toda parte. Insurge-se o baixo clero? Tumultuam-se as casas legislativas, desrespeitando partidos e acordos? Não tenhamos dúvida: é o cachaceiro de João Alfredo quem, as pernas bambas e o hálito mais perfumado do que tanque de carro a álcool, está por trás. A reforma do ministério resulta numa equipe frankenstein, com cabeça de porco, corpo de avestruz e pés de bode? A arquitetura só pode ter saído da prancheta do cachaceiro. Seu longo, ainda que incerto braço, vai longe. O presidente George W. Bush resolve indicar para a presidência do Banco Mundial, instituição que se deve pautar pela pacífica ajuda aos pobres e pela colaboração internacional, o notório Paul Wolfowitz, o ideólogo da Guerra do Iraque, para quem a comunidade internacional que se dane, e os 100 000 mortos... que são 100 000 mortos, quando a guerra vale a pena e a alma não é pequena? Tem tudo para ser obra do cachaceiro, que de João Alfredo se despachou até Washington, para promover um especial quebra-quebra no Salão Oval da Casa Branca.
Recordemos a origem do tenebroso personagem. O cachaceiro fez sua aparição no cenário nacional num discurso do deputado Severino Cavalcanti em sua primeira visita à cidade natal, João Alfredo (PE), depois de eleito presidente da Câmara. Foi o famoso discurso do "Não me catuca, Ana". Severino pôs-se a contar a história de um cachaceiro que certa ocasião promoveu quebra-quebra num bar. Cobrado pelo prejuízo, o homem pediu que ligassem para Severino. Enquanto o pai discursava, a filha do deputado, Ana, cutucava-o de leve. Sabia que o caso não era lá muito edificante. "Não me catuca, Ana, que eu quero contar a história", cortou Severino. E contou que, generoso, assumiu a responsabilidade pelo dano de 400 reais causado pelo bêbado. Por que teria agido assim?, perguntou ele mesmo. E ele mesmo respondeu: "Porque era um cachaceiro de João Alfredo".
Este é o primeiro ato da história. O segundo foi escrito pela repórter Angela Lacerda, do jornal O Estado de S. Paulo, enviada a João Alfredo para verificar direito que história era aquela. Cachaceiro? Bar destruído? "Conheço João Alfredo inteira, nunca soube quem era esse rapaz", disse um dos entrevistados da repórter. "Ele deve ter inventado essa história para mostrar sua influência e poder", disse outro. Um depoente lembrou que certa vez houve, sim, tumulto num bar – talvez o do Edinho da Moenda, talvez o de Dona Maria. Edinho da Moenda confirma que, em 2000, realmente houve confusão em seu estabelecimento – mas sem ligação com Severino. Dona Maria afirma que "graças a Deus" nunca houve, em mais de trinta anos, confusão em seu bar. Conclusão: ou o povo de João Alfredo anda muito desmemoriado ou Severino inventou o caso do cachaceiro arruaceiro.
Hummm... Um presidente da Câmara inventando histórias? O respeitável detentor do posto máximo da Casa do Povo espalhando lorotas e se dando a gabolices? Não. Mil vezes não. Severino Cavalcanti dava vazão a seu talento de ficcionista, esta a mais razoável explicação para o episódio. O Cachaceiro de João Alfredo – assim, com maiúsculas, que é como merece ser tratado – é a genial contribuição do deputado à galeria de personagens que ajudam a iluminar, com a graça das metáforas e as lições das fábulas, a vida política e os costumes nacionais. Não existe a Velhinha de Taubaté, do Verissimo? Não existe Eremildo, o Idiota, de Elio Gaspari? Não existiram Gastão, o Vomitador, de Jaguar, e a Tia Zulmira, de Stanislaw Ponte Preta? E, antes deles, o Jeca Tatu, o Juca Pato, o Zé Povinho?
A essa ilustre galeria vem juntar-se a inspirada criação de Severino. O Cachaceiro de João Alfredo é o responsável por grandes confusões que têm lugar, e se reproduzem, impunes, por causa da cumplicidade dos políticos. Agora se compreende o episódio Waldomiro Diniz. Foi o abominável personagem quem lhe sussurrou ao ouvido, com sua característica língua enrolada, as falas da famosa fita do "um por cento para mim". Também não foi outro quem, no churrasco da chácara em Brasília, lá pelas tantas, já no seu estado natural – isto é, mais para lá do que para cá –, achegouse ao padre das Farc (atenção, o padre das Farc existe mesmo, não é personagem de ficção) e sugeriu: "Agora oferece dinheiro aos candidatos do PT".
Não foi por acaso que o Cachaceiro de João Alfredo surgiu da mente de Severino Cavalcanti. A obra-prima do personagem, até agora, foi o quebra-quebra moral ocorrido durante a madrugada em que a Câmara elegeu seu novo presidente. Foi ele, não há dúvida de que foi ele. Dá para sentir no ambiente, até agora, o empesteado cheiro do personagem. O Cachaceiro de João Alfredo é como o Sobrenatural de Almeida, que Nelson Rodrigues concebeu como responsável, no futebol, pelos gols impossíveis e pelos resultados inacreditáveis. Ele veio para explicar o inexplicável.
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