Folha de S.Paulo - CLÓVIS ROSSI: A morte do grilo falante - 24/03/2005

SÃO PAULO - Nos seus primeiros 23 anos de vida, o PT foi uma espécie de grilo falante da política brasileira, a sua consciência crítica, sempre com a mão no gatilho, pronto para disparar a bala da crítica impiedosa.
Pode ter errado no varejo, mas acertou no atacado.
Pena que, nos dois anos desde que chegou ao poder, o grilo falante virou farinha (do mesmo saco).
É essa a matriz central para a crescente decomposição da política brasileira. Não que ela tenha sido mais pura, menos fisiológica, menos corrupta em anos anteriores. É que, agora, não há mais o temor de o grilo falante apontar os absurdos, porque o bichinho juntou-se à esbórnia.
É por isso que Severino Cavalcanti diz em voz alta o que antes ele e muitíssimos de seus pares diziam baixinho, como apontou ontem Fernando Rodrigues, nesta mesma página, com a habitual competência.
O resultado tende a ser devastador, mesmo em uma sociedade amorfa como a brasileira. Já há, na internet, sites defendendo o voto nulo nas eleições de 2006 -além de leitores que escrevem, desesperados, propondo a mesma fórmula.
É um retrocesso aos anos de chumbo, quando, por falta de liberdades públicas, parte da oposição ao regime militar pregou o voto nulo. Agora é por falta de pudor dos políticos, antes encoberto, hoje escancarado.
Internet à parte, houve uma rebelião de eleitores de Cidade Ocidental (GO), perto do Distrito Federal, porque o prefeito criou para si e para o vice mais três salários (do 13º ao 15º). É o efeito Severino.
No fundo, Cidade Ocidental é uma micro-Bolívia, país em que, desesperançado da via política convencional, que só engana o andar de baixo, o povão vai às ruas e sitia um presidente depois do outro.
Não creio que aqui se chegue a tanto, tamanha é a bovina mansidão brasileira. Mas já é um alerta.