Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 19, 2005

O GLOBO- Miriam Leitão: Negação do visível

Certas coisas que são ditas no debate sobre negros no Brasil são tão esquisitas que não dá nem para contraditar. O que se pode dizer de uma pesquisa que tenta provar o oposto do que todas as estatísticas do IBGE mostram e de todo o registro visual que tem quem entra em qualquer universidade brasileira? É óbvio que a universidade pública não reflete o Brasil em suas etnias e classes sociais na mesma proporção da sociedade.
Os que estão sinceramente convencidos de que o Brasil não tem racismo, nem desigualdade racial precisam escolher um de dois argumentos: ou bem os negros ganham menos porque estudaram menos, ou bem eles estão perfeitamente refletidos na universidade, na exata proporção que existem na sociedade. Os dois argumentos juntos se anulam. O país saiu do silêncio para o debate sobre a questão racial; isso é bom. Mas ruim é uma das partes querer negar o que é visível.


É visível que a universidade pública tem muito mais brancos, ricos e de classe média do que pobres e negros. Essa impressão de que as classes A e B são maioria nas universidades públicas sempre foi respaldada pelos números do IBGE .

É difícil saber que erro é pior: uma pesquisa que contrarie o senso comum, as constatações visuais e as boas estatísticas, ou o cancelamento de uma entrevista coletiva em que a pesquisa seria apresentada. O MEC deu uma demonstração de intolerância — típica do partido que nos governa — que atrapalha ainda mais um debate que, nos últimos tempos, encheu-se de ruídos. É com capacidade de ouvir, de ambas as partes, que se fará o necessário diálogo sobre a complexa e profunda questão racial no Brasil.

Um argumento usado até recentemente para explicar a falta de negros nas universidades era que eles estudaram menos, ou em escolas piores, e por isso não passavam no vestibular. Agora o argumento mudou radicalmente: não é preciso cotas, porque eles já estão lá dentro. Antes, dizia-se que os salários dos negros eram menores porque eles tinham menos escolaridade, agora o argumento é outro: eles têm a mesma parcela de vagas na universidade pública que têm na população brasileira.

A universidade pública brasileira é o gasto social com menor foco no pobre. Isso é fato, por mais que incomode a tantos. Mas é apenas uma parte do problema. O que convém discutir é todo o resto.

A última “Veja” traz a entrevista das páginas amarelas com o ator negro Will Smith. A primeira pergunta que a repórter faz é: por que há tão poucos negros bem-sucedidos nos Estados Unidos?

A pergunta é ótima. Só que deveria ser feita no Brasil também. Por que nós nos dispomos a ver a desigualdade racial apenas no país dos outros e não no nosso? Eles são 13% da população americana e aqui são quase a metade. Lá, há negros poderosos na vida pública e na corporativa. Na última festa do Oscar, os prêmios de melhor ator e melhor ator coadjuvante foram conquistados por negros. Se Will Smith tivesse virado a pergunta e dito o seguinte: “E no seu país, onde metade da população é afro-descendente, existem muitos negros bem-sucedidos?” Teríamos o que responder?

Will Smith deu uma resposta brilhante à pergunta inicial. “Um país projetado sobre o trabalho escravo não se reinventa de um dia para o outro. O racismo faz parte da fibra de que a América é tecida.” Esse é o ponto; do qual fugimos desde Joaquim Nabuco.

A primeira leva de escravos chegou em 1530. Até maio de 1888, são 358 anos. Isso significa que, da história conhecida do Brasil, em 70% do tempo, o país teve a escravidão como base da economia. Evidentemente isso não acaba, a não ser com políticas públicas deliberadas.

Naquela noite de 13 de maio, há 117 anos, os abolicionistas foram dormir convencidos de que tinham vencido e que nada mais havia a fazer, a não ser cantar vitória. O erro foi esse. Toda revolução exige que se comece, no dia seguinte, a reconstrução da nova ordem, a destruição de tudo o que existe ainda de velho. Do contrário, o velho renascerá de outra forma. Assim ensina a História. Seria preciso, no dia 14 de maio, iniciar outra tarefa: educar os ex-escravos, prepará-los para a nova ordem do trabalho assalariado, fortalecê-los para que avançassem na estrutura de poder do país, até porque a República — por natureza mais igualitária — já despontava no horizonte. Há mais de um século, a Nação adia essa tarefa.

As cotas não são a salvação. É preciso muito mais. Elas serviram para iniciar o debate adiado. E eu sinto dizer que não estou orgulhosa do debate que o país está tendo. Parece um vale tudo. Nega-se o que é visível, aparecem dados que destoam da realidade, ouve-se mais um lado do que o outro. Mesmo a prova mais contundente de racismo — a morte de Flávio Ferreira Sant’Ana, um jovem dentista negro confundido com um ladrão por estar num carro — não ilumina a discussão. O país tenta tanto fugir de si mesmo que Flávio apareceu em certas reportagens não como um negro morto pela polícia, mas como um dentista assassinado. Quem chega de fora no país deve concluir que o Brasil discrimina dentistas.

O país está se perdendo num pequeno atalho do debate sem ver o todo de frente: este é um país que escravizou os negros por três séculos e meio e hoje os discrimina. Entender isso é a palavra inicial no diálogo de raça que o Brasil não pode mais evitar se quiser ser o que sonhou ser: uma democracia racial.

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