Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 19, 2005

VEJA on-line -Entrevista: Gerardo della Paolera

Para o economista argentino, o encanto
do povo com o presidente Kirchner é ilusório,
e o surto nacionalista vai custar caro ao país


A população argentina vive uma catarse. Ilude-se com o crescimento momentâneo da economia e apóia um governo populista numa tentativa desesperada de recuperar o orgulho e o patrimônio que perdeu desde a crise iniciada no fim da década de 90. A análise é do economista argentino Gerardo della Paolera, presidente da Universidade Americana de Paris. Aos 46 anos, Paolera carrega no currículo o fato de ter repatriado na década de 90 mais de sessenta acadêmicos argentinos que haviam deixado o país para lecionar em universidades estrangeiras. Hoje, repetir o feito é praticamente impossível. "Cerca de 200 000 profissionais qualificados saíram do país nos últimos anos e, se voltarem para a Argentina, vão ganhar algo como 1 000 dólares por mês." Paolera lamenta que o populismo nacional-desenvolvimentista tenha ressurgido com força na Argentina e culpa o fato de a reforma liberal dos anos 90 não ter sido concluída com sucesso: "Faltou uma Lei de Responsabilidade Fiscal. O déficit público destruiu a Lei da Conversibilidade e empobreceu metade da população argentina".

Veja – Que lições o Brasil pode tirar da negociação bem-sucedida da dívida argentina?
Paolera – Em primeiro lugar, nossa experiência não deveria servir de exemplo para país algum, muito menos para o Brasil. Com poupança doméstica baixa, o Brasil precisa muito mais do mercado externo para financiar seus investimentos. Além disso, o mundo todo está olhando para o Brasil. Ao lado da China e da Índia, é um país que se destaca pelo crescimento de suas exportações e pela firme posição nas negociações comerciais. Não pode se dar ao luxo de pensar em moratória.

Veja – O caso argentino aqueceu o debate sobre a reestruturação da dívida de países emergentes. Qual o preço que a Argentina pagará pela moratória?
Paolera – Já está pagando um preço altíssimo. A fatura que diz respeito ao calote já é visível nos indicadores de pobreza, que ainda chegam a mais de 40% da população, nos salários que caíram absurdamente desde 2001, nos bancos quebrados e nas empresas sem crédito. Quando vou a Buenos Aires, vejo o retrato de uma aguda desigualdade social, que, ao contrário do que ocorre nos demais países da América Latina, fica cada vez mais profunda na Argentina.

Veja – E quais serão as conseqüências de impor enormes perdas aos credores?
Paolera – Acho que a conta da negociação dura que a Argentina fez com os credores ainda está para chegar. Ela virá quando o país precisar financiar seus gastos e reconquistar a confiança dos investidores. Grandes bancos prevêem que o país pagará juros relativamente baixos para uma república que acabou de sair do calote: cerca de 10% ao ano. Mas o principal problema não será o custo do financiamento, e sim o volume que a Argentina conseguirá atrair. Será muito difícil para ela contrair grandes dívidas daqui para a frente.

Veja – A exemplo do presidente venezuelano, Hugo Chávez, o presidente argentino, Néstor Kirchner, incitou a população contra empresas petrolíferas estrangeiras. O que isso representa para a América Latina?
Paolera – Kirchner e Chávez transformaram o ideal de Simón Bolívar – que acreditava na aliança política da América Latina – no discurso hipócrita e impossível da independência econômica. Aos fatos: a Argentina está sobrevivendo graças à China, que consome vorazmente nossos produtos. A Venezuela está sobrevivendo porque os Estados Unidos deflagraram uma guerra que fez o preço do petróleo subir e porque o mundo está consumindo mais combustível para crescer. Se a América Latina quiser crescer sem solavancos, de maneira sustentada, não tem outro caminho que não seja o do comércio internacional. Kirchner e Chávez sabem disso, e não há ideologia alguma por trás de suas ações. Ainda que tentemos, é impossível intelectualizá-los. O que há por trás de suas ações é um discurso fácil, populista, de quem está aproveitando uma situação conjuntural para ganhar força política. A história argentina está repleta de bravatas como essa. A postura de Kirchner é muito parecida com a do ex-presidente Juan Domingo Peron, que, com medidas populistas, em poucos anos esgotou as reservas de ouro do país na década de 40.

Veja – O presidente Lula tem se aproximado de Kirchner e Chávez. O que isso significa para a América Latina?
Paolera – Há uma diferença drástica entre Lula, de um lado, e Chávez e Kirchner, de outro. Chávez está sentado em cima de reservas de petróleo e usa esse fator econômico a seu favor na hora de se posicionar politicamente. Kirchner é um populista, no melhor estilo peronista. Criticava o clientelismo do ex-presidente Menem e fez a mesma coisa ao substituir os juízes da Suprema Corte argentina por seus apadrinhados. Lula tem um time econômico que segue à risca a máxima liberal de que não existe almoço grátis no capitalismo. Essa equipe tem resistido a pressões políticas, respeita contratos e mantém a responsabilidade fiscal. O que Lula faz ao se aproximar de Chávez e Kirchner é somente uma estratégia política para consolidar sua liderança na América Latina. Lula não tem nada a ver com esses dois.

Veja – A Argentina cresceu 17% desde 2003, mais do que qualquer outro país em desenvolvimento. Esse número não impressiona?
Paolera – Aí é que está o problema. A Argentina está apenas vivendo um "veranito". Ele logo vai passar. A economia argentina tem sido beneficiada pelos juros baixos nos países ricos. Isso estimula o consumo, eleva a procura por produtos básicos e, conseqüentemente, contribui para aumentar as exportações do país. Mas esse crescimento tem um grande componente de sorte. Além disso, a Argentina não estava pagando parte de sua dívida. Por isso conseguia investir e ao mesmo tempo economizar e produzir superávit primário. Se Fernando de la Rúa tivesse essas mesmas condições em 2001, a situação do país hoje seria outra. Não é possível creditar os recentes indicadores econômicos a uma política de governo para incentivar o consumo e a produção. A Argentina tem uma dívida de 72% de seu produto interno bruto. Somente neste ano terá de pagar 13 bilhões de dólares, o equivalente a 8% de suas riquezas, e, para piorar, não pode contar indefinidamente com o preço da soja em alta para se financiar.

Veja – Kirchner conseguiu renegociar e reduzir a dívida do país de 113% para 72% do PIB...
Paolera – Essa negociação não serve de parâmetro. O presidente contou com dois fatores excepcionais. O primeiro foi o elevadíssimo apetite dos investidores para os mercados emergentes. Vários fundos de investimento compraram os papéis de pequenos poupadores e vão ganhar muito dinheiro porque os novos títulos se valorizarão à medida que a Argentina se distanciar do calote. No dia seguinte à reestruturação, os especuladores que pagaram barato já podiam vender os papéis com lucro de 10%. O segundo fator é que, se o calote tivesse ocorrido durante a administração do ex-presidente americano Bill Clinton, a Argentina teria tido muito mais dor de cabeça. Os argentinos tiveram a sorte de as atenções dos dois maiores agentes da arena internacional – Estados Unidos e Europa – estarem voltadas para a guerra contra o Iraque e os conflitos entre Israel e Palestina. A Argentina não estava no foco das atenções mundiais – e, por isso, pôde arriscar.

Veja – Quem deveria ter assumido o papel fiscalizador da Argentina na comunidade internacional? O Fundo Monetário Internacional?
Paolera – O FMI foi extremamente leniente com a Argentina. Por uma razão muito óbvia: quanto mais o país pagar aos credores da dívida, menos dinheiro terá para pagar ao FMI. E a Argentina é o terceiro maior devedor do Fundo. Na verdade, o FMI é um credor privilegiado porque vai receber tudo o que emprestou. Por isso, preferiu não colocar a Argentina contra a parede. Que moral teria o Fundo se recebesse apenas 30% de sua dívida? Nesse sentido, o FMI vive hoje um paradoxo. Em vez de ser um garantidor de recursos em tempos de crise, tornou-se credor privilegiado de um país sob calote.

Veja – Durante os anos 90, a classe média argentina extasiou-se com a moeda forte e os frutos das reformas liberalizantes de Carlos Menem. Agora, numa postura radicalmente oposta, apóia o modelo populista-estatizante de Kirchner. Afinal, qual é a orientação ideológica dos argentinos?
Paolera – Somos um povo liberal-democrata. Mas devastado por uma reforma liberal mal-acabada. Foram justamente os erros do modelo liberal da década de 90 que abriram as portas para o ressurgimento do populismo que vivemos hoje. Faltou uma Lei de Responsabilidade Fiscal. O déficit público estava destruindo a Lei da Conversibilidade e, quando perceberam o problema, um não-peronista, o presidente Fernando de la Rúa, tentou forçar o ajuste fiscal. Obviamente, não teve apoio político porque a maioria das províncias era governada por peronistas. Já no fundo do poço, o peronismo ressurgiu com a promessa de crescimento e, nos últimos dois anos, conseguiu cumpri-la. Não por mérito próprio, e sim como conseqüência do crescimento mundial. Para a população, não importa o motivo. Os argentinos estão preocupados com o presente. Eles estão aproveitando o calor do "veranito" para tentar recuperar o que perderam. A sociedade ficou tão abalada com a crise de 2001 e 2002 que hoje desfruta, em estado catártico, o crescimento econômico sem analisar as condições políticas do país. Enquanto os professores nas escolas tentam convencer os alunos a ter responsabilidade social e dever cívico, as crianças vêem seu governo suspendendo dívidas, os pais perdendo dinheiro ou, em raros casos, enviando dinheiro ao exterior para se proteger. É uma situação ética muito negativa.

Veja – O senhor é um dos poucos analistas latino-americanos que não defendem o uso da moeda fraca para impulsionar as exportações. Por quê?
Paolera – Parte do setor produtivo sempre clamou pela desvalorização do peso alegando que a moeda nacional fraca garantiria produtividade ao setor exportador. Mas produtividade não pode ser dependente de câmbio e juros, pois esses são instrumentos de política econômica sujeitos a fases mais ou menos favoráveis. No caso da Argentina, a melhor fase das exportações foi justamente durante a vigência da paridade, quando o peso equivalia ao dólar.

Veja – Qual é a explicação?
Paolera – A explicação é que a abertura comercial e a forte campanha dos produtos argentinos no exterior foram mais importantes do que a taxa de câmbio. Produtividade depende de novas máquinas e equipamentos e de investimento em capital humano. A indústria argentina já opera com 70% de sua capacidade e precisa encontrar financiamento. O problema é que o sistema bancário não tem crédito para oferecer. Além disso, é necessário atrair pessoal capacitado, mas, como os salários estão baixíssimos, o país sofre um êxodo de mão-de-obra qualificada, principalmente de cargos cruciais como gerentes executivos. Eu diria que cerca de 200 000 profissionais deixaram o país desde 2002 para ganhar mais na Europa e nos Estados Unidos. Vejo meus sobrinhos com alta qualificação precisando da ajuda dos pais e avós para sobreviver num mercado de trabalho que paga 1 000 dólares para um profissional com mestrado e pós-graduação. É claro que há um atraso histórico na América Latina causado pelo modelo de substituição de importações que vigorou após a II Guerra Mundial. Os países se fecharam e as indústrias só atendiam ao mercado interno sem competir com as multinacionais.

Veja – No início do século XX, a Argentina era a grande promessa da América Latina de ter uma nação de Primeiro Mundo. Em que bifurcação o país perdeu o rumo?
Paolera – Nem eu nem meus colegas conseguimos chegar a uma conclusão. Mas certamente o descrédito nas instituições teve peso fundamental na brutal inversão de trajetória de crescimento. A Argentina nunca respeitou suas instituições. Crescemos vertiginosamente no início do século passado porque tínhamos uma tendência natural à economia de mercado. Fomos colonizados por europeus que vieram trabalhar e ganhar dinheiro. Nesse contexto, o comércio com a Europa foi uma escolha natural. Mas sempre tivemos um problema sério de corrupção, traço que herdamos de nossos ancestrais do Mediterrâneo. O banco central argentino, criado em 1935, nunca teve credibilidade. A Justiça sempre foi vulnerável a pressões políticas. Entre 1955 e 1983, tivemos dezesseis presidentes, o que significa que cada um passou, em média, menos de dois anos no cargo. Além disso, a Argentina vive uma crise de identidade típica de países médios, é irrelevante para os principais mercados e, por isso, não tem uma política externa definida. O Brasil é nosso maior parceiro comercial, e eu não sei dizer qual é a política externa em relação ao país vizinho. Às vezes, estamos em lua-de-mel com o Brasil e, às vezes, somos arquiinimigos.

Veja – A percepção dos argentinos sobre si mesmos mudou com a deterioração econômica?
Paolera – O esporte nacional do argentino é se achar excepcional, um europeu dentro da América Latina. Sempre tivemos delírios de grandeza. A melhor definição desse sentimento foi dada por André Malraux, escritor francês e ministro da Cultura do general Charles de Gaulle na década de 50: "Buenos Aires é a capital de um império que nunca existiu". Esse conceito foi abalado pela crise, e os argentinos ficaram mais humildes. Foram forçados a entender que somos um povo simpático, mas irrelevante para o mundo. Não seremos os Estados Unidos da América Latina, esse papel é do Brasil. Não há nada de errado nisso. Podemos ser um país pequeno e irrelevante em política externa, mas com qualidade de vida. Acredito que em 25 anos poderemos nos transformar em uma nação relativamente desenvolvida, com economia estável, bons indicadores sociais e respeito aos contratos.


Carina Nucci

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