Meu professor de sexo foi o saudoso pipoqueiro Bené, que trabalhava na Urca nos anos 50. Vivíamos em volta de sua carrocinha, comendo suas pipocas doces ou salgadas — a eterna dúvida da infância que depois se estenderia pela vida, nos amores tumultuosos, em perdas e ganhos com mulheres. O nosso Bené, orgulhoso com o impecável aventalzinho branco, cabelo com brilhantina e dentinho de ouro, nos dava aulas sobre os misteriosos prazeres da carne. Contava-nos por exemplo do famoso rendez-vous (nunca encontrado) de menininhas do Instituto de Educação, todas pecando de uniforme; nos falava dos ricos prostíbulos cobertos de espelhos cheios de francesas; nos incitava a apalpar os seios das namoradinhas e também, seriamente, nos advertia sobre o grave perigo de virarmos “viados”, fato que nos atiraria num gueto molenga de desprezados, onde caíam os incautos praticantes da “meia” ou “troca-troca”, como o chamam os paulistas, mais mercantis. Hoje, os viados têm orgulho de si, usam bigodes e são malhados, mas perderam a dramaticidade das bichas de antanho, caricatas, sofridas ou disfarçadas por véus de macheza, desmascaradas por um agudo na voz ou uma desmunhecada imprevista.
Mas a aula magna de Bené foi quando nos apresentou a Carlos Zéfiro, o maravilhoso corruptor da juventude reprimida. Por que falo essas coisas? Porque ia escrever sobre a incompetência administrativa do PT, sobre o Severino e a reforma ministerial, mas vagando deprimido no Leblon, encontrei numa livraria um fascículo do querido pornodesenhista, que acaba de ser reeditado pela “A Cena Muda”; e voltei ao passado. Quem foi Carlos Zéfiro? Foi na verdade um doce funcionário público chamado Alcides de Aguiar Caminha Filho, que adotou esse pseudônimo meio grego, evocando ninfas em fuga e sátiros peludos, para desenhar suas sacanagens anonimamente. Zéfiro teve o condão de retratar a vida sexual daquela época, em um mundo onde as imagens eram ralas, os filmes eram caretas, a TV era em preto-e-branco. Seus livrinhos de sacanagem nos trouxeram uma esperança de prazer, iluminavam de tesão nosso cotidiano seco, onde vivíamos sem comer ninguém. Comprar suas revistinhas era um ritual clandestino, com o jornaleiro de cúmplice.
Suas mulheres eram meio gordas, “boas”, de meias e ligas negras, cabelos soltos, bocas carnudas, todas meio Jane Russell ou Dorothy Lamour. As estórias de Carlos Zéfiro tinham uma estrutura dramática recorrente: um desejo proibido, um homem solitário em busca de prazer, um encontro inesperado e o desenlace com a conjunção carnal: “Edith atirou-se em meus braços e colamos as nossas bocas em um beijo abrasador enquanto nossos sexos se buscavam...” Zéfiro era influenciado pela narrativa e os enquadramentos do cinema americano dos anos 50. A ação se passava em apartamentos e carros antigos, em esquinas do Rio, entre mulheres de meias de “nylon” com risco atrás e homens de terno e gravata em convulsivas paixões. Havia enredo, diálogos, personagens com nome próprio, chapéu, sutiã, Srta. Gilda amando Sr. Alberto, e o clímax chegava como um prêmio proibido, um alívio como um happy end sacana. Havia um toque “art déco” nos desenhos de Zéfiro, algo também do mundo de classe média de Nelson Rodrigues.
Lendo o livrinho de Zéfiro “O viúvo alegre”, perguntei-me: Onde anda a boa e velha sacanagem de outrora? Sexo era pecado e até hoje sinto falta daquele tempero culposo, criminal, que fazia a fantasia nunca realizada mais desejada ainda. Não havia essa cachoeira infinita de imagens que hoje nos assolam e cegam por tanta visibilidade. Vemos tanto, que não enxergamos quase nada. Hoje, a infinita libertinagem da indústria do sexo acaba programando nosso desejo; somos masturbados por fantasias industriais. Sabemos cada detalhe do rabinho, do peitinho de cada mulher famosa, e o desejo se esvai por excesso de exposição.
Nos anos 50, muito se exigia dos onanistas; tínhamos de ter criatividade. Havia uma revista chamada “Saúde e Nudismo”, onde víamos vagas suecas deitadas em praias, impressas em monocromia azul, diante das quais fazíamos concurso de masturbação em velocidade — ganhava quem gozasse primeiro, treinando para futuras ejaculações precoces. Mas, de certa forma, a repressão era estimulante para a imaginação jovem. Tínhamos de construir cenas eróticas com vizinhas, tias, mães dos amigos. Pensávamos: “Aí, a mãe do Carlinhos se aproximou de mim e me mostrou suas pernas com meias negras, liga, e sapatos altos..” Ou então: “A professora falou, de pernas cruzadas: Fica aí, Arnaldinho, depois da aula tenho muitas coisas para te ensinar”.
Não havia ainda sexo audiovisual. Tudo era narrado, com princípio, meio e fim. Masturbação era literatura; hoje é videoclipe. Um amigo meu comentou outro dia: “Se nessa época houvesse essas revistas “sexies” de hoje, eu teria morrido aos 17 anos”. Um outro companheiro de sofrimento chegou a se masturbar folheando o livro de medicina legal de Hélio Gomes, com imagens de mulheres nuas vítimas de assassinatos e estupros. Zéfiro veio nos ajudar.
Hoje, nosso problema é outro. A permissividade criou outra forma de angústia: como dar conta de tanta liberdade? Como satisfazer esse desejo sempre deslizante que o mercado criou? Como não temos mais saída coletiva para uma felicidade sonhada ou mesmo ilusória, temos, fora da religião, apenas a propaganda de um impossível prazer individual, um narcisismo sem fundo. Vivemos num paraíso insuportável, com uma oferta impossível de atender. Como comer todo mundo? Diante de um vasto panorama de bundas, estaremos eternamente insatisfeitos. O mercado estimula nossa insatisfação.
Por isso, Carlos Zéfiro nos faz bem, do fundo de um tempo em que éramos menos livres, mas conhecíamos o delicioso sabor do pecado.
Entrevista:O Estado inteligente
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