Na semana que passou, comemoraram-se os 20 anos de democratização do país. Melhor seria dizer desmilitarização. Foi um período confuso, em que pontificaram o presidente José Sarney e algumas eminências pardas, como Saulo Ramos, Mathias Machline, o empreiteiro Murilo Mendes, o genro Jorge Murad e outras figuras que, como em todos os períodos da história, exercem sua atividade oportunista e depois saem da história sem deixar muitos vestígios. Nessa fase confusa, de uma democracia infante, surgiu uma das figuras mais carismáticas da vida nacional de todos os tempos.
O ministro da Fazenda Dilson Funaro era um empresário nacional trabalhador, que cresceu protegido pelo mercado fechado e fez da empresa Trol o segundo ou terceiro fabricante nacional de brinquedos.
Foi ungido à presidência do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) por indicação de Ulysses Guimarães -o todo-poderoso prócer do PMDB. Logo depois, assumiu o o Ministério da Fazenda. Para o Banco Central, foi Fernão Bracher. Debaixo de Bracher, os economistas André Lara Rezende e Pérsio Arida, incumbidos de pensar o Plano Cruzado -montado nos moldes do pioneiro Plano Primavera, da Argentina.
Três grupos se formaram naquela colcha de retalhos do governo Sarney. No Banco Central, Lara Rezende e Arida, mais Luiz Carlos Mendonça de Barros. Na Fazenda, Funaro cercou-se de Luiz Gonzaga Belluzzo e João Manuel Cardoso de Mello, da linha estruturalista da Unicamp. Ao Planejamento ascendeu João Sayad, indicado pelo então governador de São Paulo, André Franco Montoro, levando consigo economistas de USP e homens de mercado, como Andrea Calabi, Cássio Casseb e Francisco Luna.
Os menores de 30 talvez não saibam avaliar o que foi o Cruzado para a fantasia nacional, nos poucos meses em que durou, antes de afundar para sempre. Mudou-se a moeda, numa operação complexa, com muitos erros sérios de conversão, aumentaram-se os salários e congelaram-se os preços, em uma economia fechada que não podia contar nem sequer com importações para suprir a falta de produtos e com enorme déficit público.
A explosão era inevitável. Pegou moda acusar Sarney pelo fracasso do Cruzado e culpar sua presumível tibieza pelo fim do plano. Não é verdade. Premido pelas circunstâncias ou não, Sarney fez tudo o que os economistas lhe pediam. Só que, depois que o plano começou a fazer água, não havia nem sequer consenso entre os três grupos sobre as medidas a serem adotadas.
Enquanto o Cruzado durou, a figura de Funaro se impôs majestosa. Primeiro, o plano em si, primeira tentativa de domar a superinflação que atrapalhava havia anos a vida do país. Depois, a revelação -pelo jornalista Janio de Freitas- de que Funaro padecia um câncer linfático fatal. Finalmente, a própria atitude do ministro, seu ar confiante, a maneira segura, sem rompantes e sem vacilações com que se conduzia, seu porte de estadista, seu perfil olímpico.
O povo o adorava; quem acompanhava os fatos econômicos de perto entrou em pânico. O câncer deu-lhe um sentido de missão temerário. Passou a acreditar que Deus lhe dera sobrevida para que pudesse salvar o país e que nada poderia atrapalhá-lo. Havia excesso de consumo? Bastaria ir à televisão, fazer um apelo, e o povo deixaria de consumir.
Com tudo isso, dos modernos governantes, ninguém chegou tão perto do povo quanto ele, nem Luiz Inácio Lula da Silva, com toda sua cancha, nem Itamar Franco, com aquele ar de tio neurastênico tão do agrado do homem comum. Seu carisma terminou com o fracasso do Cruzado.
Morreu logo depois de deixar o poder, e a Trol morreu logo depois dele. Ministro poderoso e amado, não se tem notícia de um ato, no exercício do poder, visando salvar sua empresa.
Tinha a grandeza temerária dos grandes personagens da história.
Entrevista:O Estado inteligente
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