A democracia é o conflito organizado. Nas suas duas formas básicas, o jogo democrático oferece recompensas e riscos à classe política.
No sistema parlamentar, o Executivo é uma emanação do Parlamento. A maioria parlamentar nomeia o primeiro-ministro e governa por meio do seu gabinete. O chefe de governo e seus ministros podem cair por decisão dessa maioria. Em compensação, no caso de impasse, o chefe de Estado antecipa eleições, encerrando o mandato dos parlamentares.
No sistema presidencial, o Executivo é independente. O presidente tem mandato fixo, bem como os parlamentares. O presidente governa auxiliado pelos ministros, que nomeia sem interferência do Parlamento. Mas a maioria parlamentar pode bloquear iniciativas do Executivo, impondo ao presidente mudanças de rota política e programática.
O sistema político brasileiro degenerou a ponto de se tornar inclassificável. A classe política distorceu o jogo democrático de modo a acumular as recompensas e extirpar os riscos dos dois sistemas. O Executivo usufrui de mandato fixo, mas tem a estranha garantia de que seus projetos essenciais não serão recusados no Parlamento. A maioria parlamentar nomeia, indiretamente, os ministros, mas não governa e não corre o risco de enfrentar eleições antecipadas. A regra do jogo é parasitar o aparelho de Estado.
A transação entre os políticos esvaziou a política de seu sentido público. Um Mercadante sacrifica qualquer programa em troca do cargo de governador paulista; um Calheiros tem como programa servir ao poder de turno, e ser servido por ele; um Severino nem sequer sabe o que é programa (na acepção política) e contenta-se em prover sua clientela com sinecuras públicas. O espetáculo deprimente do comércio de ministérios não é propriamente uma novidade, mas a linguagem que o reveste não tem precedentes. Mercadantes, Calheiros e Severinos acreditam que a opinião pública perdeu a capacidade de discernir política de corrupção.
Maquiavel ensinou que o príncipe virtuoso ergue instituições sólidas. Tradução: na política, a virtude é pública, não privada, e depende das regras do jogo. A putrefação da democracia brasileira é fruto de regras que premiam os Mercadantes, Calheiros e Severinos, selecionando uma classe de parasitas da coisa pública.
A queda não começou no governo Lula, mas foi acelerada pela dinâmica de um governo fundado no pecado original da renúncia programática. Hoje, o presidente é refém da escória política que adquiriu poder suficiente para exigir sem rodeios o pagamento de resgates provisórios e sucessivos sob a forma de pedaços específicos da máquina do Estado. A recusa presidencial em pagar a parcela vencida do resgate poderia representar uma mudança de rumo, mas provavelmente apenas acrescenta juros ao próximo desembolso.
O baile da ilha Fiscal tem efeitos corrosivos que não atingem apenas o governo ou a classe política, mas as próprias bases da democracia. A figura do "condottieri", do tribuno da plebe, move-se nas franjas do sistema político brasileiro à espera de uma nova oportunidade. O discurso da virtude moral, dirigido contra os políticos e o jogo político, foi a base do governo Collor e, em tom menor, da candidatura Ciro Gomes. O governo Lula reativa seu apelo popular, descortinando o caminho para pretendentes ao papel de salvador da pátria.
Entrevista:O Estado inteligente
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