O ESTADO DE S. PAULO
O tombo da Bolsa de Nova York ocorrido no meio do pregão de ontem foi histórico. Chegou a perder 998 pontos, ou queda de 9,2%, num único pregão. Depois fechou com uma baixa de 3,2%. O balanço de mortos e feridos ficou para quando der.
A explicação de que um operador cometeu alguma barbeiragem pode até vir a se confirmar. Mas por trás de tudo está mesmo um princípio de pânico. Há uma nova percepção de que ficou alto o risco de calote da dívida por parte de países da área do euro, a começar pela Grécia.
Essa percepção vai sendo reforçada pela impressão de que as autoridades da Europa não estão dando a devida importância à crise. Ontem o presidente do Banco Central Europeu (BCE), Jean-Claude Trichet, apenas enrolou quando foi questionado em Lisboa. E a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, entoou em Berlim um velho bolero. Para preencher sua própria perplexidade, denunciou a perfídia dos bancos. "Os especuladores são nossos adversários", disse ela. "Primeiro os bancos nos pedem ajuda e agora especulam contra a dívida dos governos. Isso é uma perfídia."
Antes de desfechar esse ataque, Merkel deveria se perguntar por que os Estados soberanos da área do euro se atiraram tão sofregamente à folia fiscal; por que se endividaram até o pescoço junto aos bancos e, agora que se tornaram seus reféns, seus dirigentes saem a criticar esse jogo, que sempre foi assim e que só não é diferente porque nenhum governo até agora achou que tinha de amarrar melhor a regulamentação do mercado financeiro? Quem faz pacto com o diabo acaba entregando a alma e isso a gente sabe desde os tempos do doutor Fausto.
Os bancos não são tão ingratos e tão pérfidos como Angela Merkel está dizendo. Nenhum governo salvou seus bancos em 2008 e 2009 em troca de favores futuros. Socorreu porque a alternativa seria o desastre e colocaria em risco o interesse público. Apesar de toda a irresponsabilidade praticada, os bancos não devem nada nem aos Tesouros nem aos bancos centrais. Eles têm é de ser enquadrados.
Outra incursão incompreensível da chanceler Angela Merkel foi seu ataque às agências de classificação de risco que vêm rebaixando os títulos de dívida dos países da área do euro. Merkel defendeu ontem a proposta de criar uma agência de rating "europeia e independente" para reduzir a dependência das três grandes: Moody"s, Standard & Poor"s e Fitch.
É verdade que essas agências perderam credibilidade por terem classificado como tão boas quanto títulos do Tesouro americano ativos que ao longo desta crise foram considerados lixo tóxico. Mas não são essas agências que estão provocando o colapso financeiro nem da Grécia nem dos demais Piigs europeus. Quem hoje vem passando sinais mais confusos do que elas é o BCE.
Na relação com os bancos, vem aceitando os títulos da Grécia como se fossem tão bons quanto os da Alemanha.
Um dos sérios riscos que a economia europeia corre hoje é o de que um calote soberano deteriore as finanças dos bancos porque seus balanços estão pesadamente carregados com títulos de dívida de países da área do euro. Se essa deterioração acontecer, essas acusações de perfídia parecerão ridículas e o BCE poderia vir a ter de recomprar esses títulos com moeda emitida.
Uma operação assim provavelmente seria embalada com um desses eufemismos de ocasião usados para não reconhecer violações graves de regras de boa governança do patrimônio público.
Não seria apresentada como se tratasse de um mecanismo clássico de monetização de dívida nem, dito de outra forma, como se fosse cobertura de despesas públicas com emissão de moeda.
E, no entanto, seria isso mesmo que estaria sendo feito, com todas as consequências que daí adviriam. Por enquanto, esse é um risco que causa vertigens na Bolsa de Nova York, mas apenas um risco.
Entrevista:O Estado inteligente
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