Em muitas capitais e outras cidades importantes, temos uma nova leva de prefeitos legitimamente eleitos, após uma competição na qual eleitores e eleitos se manifestaram livremente na busca de apoio e na apresentação de suas propostas. O liberalismo também obrigou a mostrá-los em debates e acusações, como manda o figurino (que está longe de ser perfeito, mas é o menos pior) da democracia moderna.
O resultado agregado do processo como um todo promoverá um novo mapa eleitoral que será avaliado e estudado pelos especialistas. Índices, coeficientes, percentuais, gráficos e outros códigos de entendimento desse nosso modo de escolher e legitimar administradores públicos serão os indicadores de novos (e velhos) debates, tendências e revelações. Como sempre, a realidade vai promover suas surpresas e introduzir novidades nesse rito eleitoral que transforma milhões de microescolhas individuais num resultado visível que confirma ou infirma velhas expectativas e doutrinas; que coroa um candidato, colocando o seu adversário num segundo lugar que, nessa etapa do ritual, significa simplesmente a pêra sempre dura de engolir.
Antigamente, o governante era um escolhido de Deus porque sua legitimidade era dada por descendência divina. As antigas realezas haviam nascido no outro mundo e os reis eram um dos mediadores mais importantes entre deuses e homens.
Em muitos casos, eram uma prova cabal de que, afinal de contas, nós — seres nutridos também e sobretudo a sofrimento e morte — não havíamos sido totalmente abandonados pela divindade que nos concedeu a graça de termos uma linhagem e governantes abençoada nos céus.
Hoje, essa legitimidade é feita pela soma de escolhas individuais dos cidadãos que votam individual e, supomos, autonomamente, e não em grupo ou família.
Numa ponta há um laço intransferível, porque pessoal, entre o eleitor e o seu eleito (o candidato); num outro pólo, há o agregado produzido pela reunião de todos os votos individuais que elegem ou não o postulante. A química divina dos antigos é hoje a famosa e não menos misteriosa passagem da quantidade para e qualidade. Receber mais votos qualifica e, mais que isso, consagra o eleito. No processo, a tal campanha eleitoral que em todo lugar tem o feitio de uma peregrinação do famoso (e no Brasil, do superior, chamado de “homem”) em busca do pequeno (chamado coletivamente de “povo”), demarca-se um campo de disputa. Um jogo que, dependendo da experiência e do modo pelo qual a sociedade demarca a competição, pode surgir como algo claro e cordial, como uma briga de faca ou, pior que isso, como um concurso de cinismo e de hipocrisia.
No meu humilde entender, o que tipifica o processo eleitoral no Brasil é a sua imagem como uma luta na qual os disputantes podem e devem vencer a todo custo. O que não pode ocorrer é a derrota, ainda lida como algo vergonhoso porque, segundo a nossa cabeça fechada por muitas camadas de aristocratismo mal criticado e recalcado, só se entra numa disputa eleitoral (entendida como luta pelo poder — palavra forte no nosso pobre vocabulário político) para ganhar! Ora, se o treco é competitivo, tem uma marca do imponderável, desenha-se como uma disputa com regras claras, acordadas pelos competidores, se o apelo é individual e a decisão é livre, como pode ser vergonhoso perder, a menos que se tenha uma mente fascista? Quando eu, ainda jovem, escrevi — movido pela indignação e pelo sentimento de justiça — uma carta aberta contra um conhecido político e intelectual que atacava a instituição na qual eu trabalhava e dava todas as minhas forças para tornar um centro de estudos digno desse nome; e vi essa carta ser usada contra mim, ouvi de muitas pessoas um conselho estarrecedor. Ora — diziam — o uso de sua carta contra você faz parte da “política”. E em política e no jogo do poder, acrescentavam, vale tudo! O realismo contido nessa experiência deu-me uma medida exata da má consciência com a qual ainda hoje lemos o campo do poder e a área da política. Ela sempre surge como um ator onipresente nas disputas eleitorais, revelando a nossa dificuldade em ver o outro como um concorrente e não como um inimigo.
Mostrando como acreditamos piamente que o tal poder não pode ser entregue a qualquer um, pois só nós — “eleitos” — somos dignos dele e temos o direito de utilizá-lo. Ora, se isso não é uma mostra de uma total segregação entre os chamados “homens”, os poderosos, (que um dia foram eleitos) e que, hoje, nos governam e nós, então eu quero ver minha avó andar de bicicleta! Se isso não é o pior dos fascismos, esse último reduto dos que ainda pensam que podem governar porque fizeram (ou são) algo que lhes deu um equivalente ao “direito divino”, então eu quero ser mico de circo! Que os perdedores recebam minha simpatia e os eleitos, os meus parabéns.
Desejo que o Rio de Janeiro e minha querida Niterói tenham o melhor.
Espero que todos cobrem não apenas as promessas e os programas, mas sustentem, como novidade, o laço. O elo sagrado de uma confiança entre o eleito e o eleitor, sem o qual não há democracia.
Entrevista:O Estado inteligente
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