Os séculos se passam e o desespero por consolo não muda, necessariamente atraído por soluções fáceis, que sempre lembrem ao indivíduo que seus problemas começam no espírito e, logo, só terminam pelo espírito. Com fé até a falta de dinheiro e amor só vai depender de você, não das complicadas relações sociais que travamos desde que mamãe nos põe para fora. Contra isso, claro, Freud escreveu sua obra monumental, no início do século passado, vendo na psicanálise um ramo da ciência que pudesse mostrar como nosso comportamento não se submete ao código moral, movidos que somos por desejos e medos que não podem ser plenamente controlados pela autoridade. Não por acaso os religiosos reagiram mal a Freud, como antes a Darwin. Se o ser humano não pode exercer controle pleno sobre seu cerne animal, então não é nada.
Tenho pensado muito, porém, que Freud também depositou um fardo sobre a natureza humana, o que significa dizer em certo aspecto que a cultura moderna depositou esse fardo. O complexo de Édipo, o conflito entre o impulso de amar (a mãe) e agredir (o pai), soa como um pecado original, uma espécie de culpa primordial que nossa espécie carrega, um peso que pertence a outra dimensão além de nossa pobre esfera individual. Em livros do final da sua vida, como A Civilização e Seus Descontentes, Freud mudou o tom, dizendo que há uma ansiedade "realista", que é possível à consciência ajudar a reduzir o sofrimento. A natureza humana é estranha, complexa, com poderosas inclinações ambíguas; mesmo assim, o trabalho da razão, sem idealismo, não é inútil, embora não possa "oferecer consolação". Mas não foi isso que ficou. A humanidade continua se debatendo sofridamente entre instinto e renúncia.
Nesse pequeno ensaio que acaba de sair em livro no Brasil, Anjos Caídos (Objetiva, tradução Antonio Nogueira Machado), o crítico literário Harold Bloom defende a idéia de que devemos ver os seres humanos assim, como anjos caídos, mas não como satãs, embora Satã apareça na literatura religiosa como um anjo caído. Freudiano e estudioso de textos românticos, Bloom critica a mania americana de filmes e livros sobre anjos e quer dar ênfase à ambivalência humana: somos anjos porque temos imaginação, criatividade, impulso amoroso; ao mesmo tempo somos caídos, porque mortais, dados a fantasias irrealizáveis. Estou de acordo, mas sinto em Bloom, nessa sua mistura de otimismo pragmático americano com melancolia literária judaica, a mesma noção de uma humanidade condenada a priori, "esmagada" por uma frustração ancestral.
No mesmo dia em que li o livreto de Bloom, a mídia trazia as informações sobre o jovem de 22 anos, Lindemberg, que seqüestrou Eloá, de 15 anos, e a matou, no momento de uma operação policial grosseira (que não explodiu a porta direito e não fez invasão simultânea pela janela, entre outros erros). Ele dizia ter um anjo e um diabinho em sua mente, disputando sua atenção ao longo do tempo, e, numa metáfora de poder para superar seu estado emocional dividido, afirmou ser "o príncipe do gueto". Com arma na mão e um circo ao redor fica difícil ouvir a voz da razão. O sofrimento de Lindemberg não era apenas o de ter perdido a namorada; era o de ter perdido algo que lhe dava uma sensação de encaixe social, de pertencimento ao gueto, de conciliação entre voz privada e papel público. Era menos um amor perdido do que um orgulho ferido.
O irônico é ver que ainda se espantam quando ouvem o relato de uma pessoa assim como alguém pacato, tranqüilo, que só saiu de si porque o namoro acabou. Como o bom cidadão é socialmente visto como o sujeito que não é nunca agressivo, que cumpre o código coletivo de forma quase plena, imagina-se que seja incapaz de atos tresloucados ou criminosos. Mas muitas vezes é justamente por isso, por se cobrar tanto uma afirmação na sociedade, que ele a renega de modo tão cruel. Há quem diga que a contracultura criou um mundo em que não há restrições e por isso os jovens de hoje são tão agressivos. Eu acho que o mundo de hoje apenas reencena ou intensifica a velha clivagem entre as esperanças transcendentais - de harmonias totais e amores arrebatadores, como os comerciais e as canções tanto prometem - e as inevitáveis frustrações.
Não tenho uma boa opinião sobre a natureza humana, com suas inclinações para se iludir e se eximir, para nunca se satisfazer e sempre transferir a culpa para os outros, especialmente os mais próximos. E por isso mesmo acho que uma resistência a esses impulsos - ou sua conversão em relações menos neuróticas, em atividades permeadas por humor e franqueza - pode surgir melhor apenas quando não atribuímos isso a uma culpa inata. O ingênuo e o negativista são parecidos; o que se julga acima do bem e do mal em breve fará companhia a ambos. Se não sabemos a causa exata e completa da nossa dor e sofrimento, isso não significa que temos de nos entregar a loucuras materiais e curas espirituais. Todos desejamos não ter problemas e ser amados por todos. Mas não existe poder para tanto - e isso é bom.
DE LA MUSIQUE
Música ainda parece mexer mais com as pessoas do que filmes e livros. Foi só eu pedir dicas de CD e os emails choveram. Já estou comprando e escutando e comentarei nas próximas semanas. Por ora, há alguns dos quais já tinha falado, como Omara & Bethânia, agora em caixa com DVD e livro de fotos de Cuba e Bahia. No meu blog também já tinha comentado os CDs sobre Cartola de Cida Moreira, Agenor, e a coletânea Cartola para Todos, com intérpretes menos conhecidos como o ótimo Edson Montenegro. Um amigo também lembrou o Cordel do Fogo Encantado, grupo do qual gosto muito. E, puxa, fui um dos primeiros a exaltar Lay It Down, do Al Green, um dos discos do ano.
Curiosamente, ninguém contestou meu desânimo com os CDs que citei de Beck, Lenine, Zeca Baleiro e Marcelo Camelo. E na maioria os nomes que me indicaram são de músicos que não habitam os cadernos culturais diários.
POR QUE NÃO ME UFANO (1)
A única certeza sobre a crise é que ela não vai atingir o Brasil com uma "marolinha" - pois já é maior do que uma. Mesmo sem "subprimes" e a profusão de derivativos que micaram na América, a bolsa e o setor produtivo já foram bem afetados. O crédito encolheu, a bolha cambial estourou, o risco-país disparou. O Banco Central tentou imitar os outros e injetou dinheiro no sistema financeiro, sem muito sucesso. O governo lançou uma MP de madrugada, na típica tradição autocrática do poder à latino-americana, e não escondeu o prazer de engatilhar a ferramenta das estatizações, num dos últimos países a manter bancos públicos estaduais. Mas na hora de baixar os juros, como fizeram todos os outros também, certamente ele vai pregar nossa "originalidade"...
POR QUE NÃO ME UFANO (2)
Eu também não conhecia a frase de Keynes que encantou Paul Krugman em seu blog outro dia: "As palavras devem ser um pouco selvagens, porque são ataques dos pensamentos ao não-pensado." No Brasil é comum que não se entenda essa necessidade de um tom incisivo, de ataque, que é tido pela maioria dos cidadãos e professores universitários como desrespeito. Ao contrário: é a suprema expressão do respeito, da necessidade de não se render aos discursos banais, de contestar a "trama ideológica do senso comum" (para citar outro autor, Jacques Ellul).
É claro que há outra escola brasileira, a do sujeito que faz polêmica por atitude, que perde a estribeira da opinião ao sair em disparada de palpites. Mas uma existe porque a outra existe. Dizer o que se pensa é uma forma de educar a agressão, não de recalcá-la.
POR QUE NÃO ME UFANO (3)
Por mais grave que seja a crise nos EUA, pelo menos eles têm economistas como Paul Krugman e Joseph Stiglitz para confrontar o capitalismo selvagem dos porta-vozes do mercado financeiro, em nome da democracia liberal. E nós, o que temos? Delfim Netto e Maria da Conceição Tavares?