de Casablanca
Acusado de contribuir para a atual crise, o homem que durante
dezoito anos comandou o banco central mais poderoso do
mundo reagiu como o capitão Renault do cinema
Marcio Aith
Fotos Doug Mills/The New York Times e Divulgação |
ESTOU CHOCADO! |
"Estou chocado! Chocado em descobrir que aqui tem jogo." É o falso espanto do capitão Renault, um dos canastrões mais deliciosamente cínicos criados por Hollywood, pouco antes de embolsar um envelope com a propina que levava toda semana justamente para deixar funcionar o cassino do Rick’s Cafe. Para quem não se lembra, Renault era o chefe da polícia e da folia em Casablanca, então colônia francesa no Marrocos, não totalmente dominada pelos nazistas, que haviam tomado Paris mas concediam à região o status de "unoccupied desert" – o imortal, pleonástico e intraduzível "deserto não ocupado". É injusto comparar o venerável Alan Greenspan com o corrompido Renault? Sem dúvida, é um exagero quase cruel. Mas há na ação de ambos, com doses e motivações diferentes, os mesmos traços de lassidão. Greenspan, que presidiu o banco central americano de 1987 a 2006, não lucrou com sua política econômica frouxa nem com sua recusa em policiar a farra que ocorria no mundo das finanças de alto risco em Wall Street – o que, para muita gente, é uma das causas da atual crise financeira mundial. "Quem acreditou, como eu, que as instituições de crédito eram mais habilitadas para proteger o interesse de seus acionistas está em estado de choque." Essa é a frase exata de Greenspan na semana passada. Quem acreditou que Alan Greenspan era mais habilitado para proteger o público da falta de prudência das instituições de crédito também está em choque – choque de crédito e de confiança.
Sob a orientação de Greenspan, a regulação de instrumentos financeiros complicados, os chamados derivativos, foi mantida no menor patamar possível por quase duas décadas. O mercado exorcizaria seus fantasmas e expurgaria seus próprios excessos, acreditava Greenspan. Por quê? Ora, em benefício da preservação do próprio interesse dos ágeis bancos de investimentos, dos vetustos bancos comerciais, dos espertos fundos de investimento e das cuidadosas agências de classificação de risco. A regulação excessiva do governo não só era desnecessária como também prejudicaria o bom uso dos derivativos. A auto-regulação deveria resolver tudo. Assim, sob as barbas de Greenspan, os ativos financeiros globais pularam de 12 trilhões de dólares, em 1980, para 170 trilhões de dólares, em 2006. Esse dinheiro trouxe a mais longa fase de prosperidade já registrada. Mas também inflou as várias bolhas que estão no coração desta crise. Greens-pan estava errado? "Parcialmente", admitiu ao deputado democrata Henry Waxman, da Califórnia. "É exatamente por isso que fiquei chocado, pois acompanhei quarenta anos ou mais de evidências bastante significativas de que (o mercado) estava funcionando excepcionalmente bem."
Foi um dos momentos mais melancólicos da longa carreira de Greenspan. Imaginava-se que ele defenderia com mais ênfase sua lista enorme de acertos. Não são poucos. Entre eles, a descoberta do potencial oculto da revolução da internet no campo da produtividade. Até 1995, imaginava-se que um país como os Estados Unidos não poderia crescer mais de 2,5% ou ter uma taxa de desemprego abaixo de 6,5% sem que pressões inflacionárias despertassem. Não foi o que ocorreu. Greenspan percebeu que, com a revolução da internet, o paradigma mudara. Foi possível expandir a economia mais rapidamente sem deflagrar inflação. A China, é claro, ajudou, com produtos baratos e recursos infindáveis para financiar o crescente déficit americano. Mas até que ponto esse acerto está na raiz da atual crise financeira? Teria sido possível desinflar a bolha sem provocar a atual crise? Improvável, escreveu Robert J. Samuelson. Em um artigo publicado na revista Newsweek, Samuelson diz que as bolhas fazem parte de ciclos inevitáveis. E lembrou que, quando o próprio Greenspan tentou elevar os juros para conter a euforia econômica, os mercados simplesmente o desprezaram. As taxas de longo prazo, definidas pelos investidores, continuaram caindo.
Greenspan, é claro, tem uma parcela de culpa. Em várias entrevistas concedidas em 2007, inclusive a VEJA, ele já afirmava que havia subestimado o potencial explosivo da crise imobiliária americana. Mas nem de longe previu o tamanho dos problemas que estavam a menos de um ano à sua frente. "Ela (a crise) requer cuidados, principalmente por sua abrangência. Mas guarda muitas semelhanças com outras que não tiveram o poder de paralisar empresas e consumidores." Na ocasião, Greenspan disse que nem toda crise era automaticamente ruim. "Mas, se eu estiver errado e a crise tiver um desfecho muito pior, o Brasil e a China vão sofrer. Esses dois países ainda não se descolaram do mundo, como sugerem alguns." Nesse ponto também será ótimo se ele estiver errado.