Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, outubro 31, 2008

DORA KRAMER Civismo pelo avesso

Grande ou pequeno, amplo ou um mero ato isolado que se configure esvaziado, o movimento que contesta a eleição de Eduardo Paes na internet e pretende levar hoje o protesto para as ruas do Rio não pode ser visto com indiferença.

De repente uma coisa dessas cresce, a juventude adere, as pessoas ávidas por tomar alguma "providência" acham que encontraram enfim o caminho do engajamento e, sem que ninguém se dê conta do processo, se instala na sociedade o impulso de resolver contrariedades no grito em nome da democracia sob a alegação de que toda forma de bom combate vale a pena.

A idéia surgiu entre eleitores e simpatizantes da candidatura de Fernando Gabeira a prefeito do Rio, circulou no Orkut e virou uma convocação para passeata no centro da cidade com todos vestidos de preto. Para quê?

Aí é que está. Os organizadores não sabem direito. Ora informam que se trata de protesto contra a vitória do prefeito eleito, ora dizem que não é nada disso; é uma manifestação de indignados com as irregularidades cometidas pela campanha de Eduardo Paes com a intenção de "pressionar" o Tribunal Regional Eleitoral a apurar as denúncias de uso da máquina pública, boca de urna e distribuição de panfletos apócrifos contra Gabeira.

Asseguram que não pretendem contestar o resultado da eleição, mas "apenas" questionar os métodos pelos quais o eleito usou para vencer e, no entanto, proíbem alusões a candidatos. Batizam a ação de "Movimento Pró-Democracia" e vetam a entrada de quem pretende questionar seus fundamentos. "Estamos aqui para convocar eleitores, não para debater filosofia", refuta o professor Rodrigo Faray, explicitando as noções de democracia adquiridas em seus 30 anos de idade.

Compreende-se o afã de dar prosseguimento à onda de fervor cívico que uniu a metade do eleitorado da cidade em torno dos valores contidos na campanha do candidato que enfrentou as estruturas estabelecidas, rompeu dogmas do marketing político, combateu esquemas pré-fabricados com a força da inteligência, sustentou-se literalmente na cara e na coragem e, no fim, sagrou-se campeão moral na derrota eleitoral por 55 mil votos.

Uma diferença ínfima em que a abstenção de 25% certamente foi determinante. Muito mais que qualquer panfleto, uso da máquina ou ação ilegal de boca de urna, embora esse tipo de munição tenha dado uma enorme contribuição para sustentar a situação de empate entre Paes e Gabeira.

Substantivo, portanto, teria sido apostar numa campanha pelo comparecimento do eleitor às urnas no momento em que o governador Sérgio Cabral patrocinou um feriadão no fim de semana eleitoral, movendo de terça para segunda-feira a folga do Dia do Funcionário Público. Teria dado tempo de sobra.

A campanha de Fernando Gabeira foi um marco, institucionalmente didática, socialmente avançada, mostrou que há possibilidade de vida inteligente na política e por pouco não chegou lá. Entusiasmou, estabeleceu um padrão para o futuro, mas acabou.

O patrimônio amealhado no período pode e deve ser preservado, usado com estratégica, acurada autocrítica e mediana instrução política. Caso contrário, a obra iniciada voltará à estaca zero, ganhará na versão dos muito detratores o caráter de um alegre, mas breve, acontecimento. Uma boa exceção a confirmar a nefasta regra.

O ato eleitoral está extinto, a vitória de Eduardo Paes não tem volta e este é apenas um dos pontos a respeito dos quais a moçada da passeata sobre o leite derramado não entendeu nada. Não compreendeu que atividade política não é festa, tem seus tempos e suas conseqüências.

Não percebeu que reclamações adjetivas costumam cair no vazio, mas, antes disso, caem na boca do adversário dando a ele a "prova" de que o eleitor fez a opção mais responsável, pois do outro lado grassa o gosto pelo civismo do espetáculo, para não dizer da arruaça.

Não notou que movimentos denominados "democráticos" que trabalham com a ferramenta do veto transformam-se em contradições de si mesmos.

Não viu que esse tipo de atitude contraria a lógica da candidatura que agora imaginam defender e traduz falta de educação política para lidar com derrotas e vitórias tirando delas o rumo do próximo passo.

Não enxergou a ineficácia da contestação festiva sobre o andamento de processos na Justiça. Neles, prevalecem as provas; o voluntarismo não conta nada.

Não atinou para o fato de que a arte está em saber como agir para firmar o padrão e garantir com solidez sua continuidade.

Não captou o conteúdo da mensagem da campanha e, sobretudo, não destrinchou o sentido objetivo da sua existência. Lista conceitos a título de apresentação "apartidário, pacífico, espontâneo e democrático", aos quais cumpre acrescentar "equivocado", a fim de se estabelecer uma clara distinção entre ativismo político de qualidade e civismo virado pelo avesso em feitio de pura infantilidade.

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