Vitor Hugo Soares, blog Noblat
A TV exibe o novo comercial da mineradora. Suave pausa, na Bahia, na briga encarniçada dos candidatos (ambos evangélicos) João Henrique (PMDB) e Walter Pinheiro (PT), orientados nos cantos opostos do ringue por seus respectivos treinadores - ministro Geddel e governador Jaques Wagner -, os dois com muito a ganhar, ou a perder, neste domingo, 26. Além, é claro, da turma do marketing, convencida de que bater agora pode levar a uma vitória por pontos (o nocaute parece improvável ), na disputa pela prefeitura de Salvador, tão nebulosa que confunde até os institutos de pesquisa.
À margem dos cavernosos lances finais do horário de propaganda gratuita no Rádio e na Televisão, o encantamento: um banquinho, um violão, e a presença de João Gilberto. Ele interpreta música composta pelo conterrâneo publicitário, Nizan Guanaes, que bem poderia ter sido um sucesso dos maiores no começo da Bossa Nova, há 50 anos. "Já pensou se eu nascesse sem mar/ Nascesse sem Rio ou sem a Bahia?", pergunta João, docemente, na peça publicitária em que o povo brasileiro é o grande personagem.
Sei. Ocultos nos vãos das portas, sempre haverá um lorpa, um pascácio, ou idiota da objetividade - daqueles que Nelson Rodrigues não perdoava -, a destilar peçonha: "Também pudera! João Gilberto faturou um cachê de 500 mil reais para virar garoto propaganda da privatizada companhia Vale do Rio Doce, cheia de grana apesar da crise mundial", ataca um deles, sem ao menos conseguir ser original na agressão.
Sim. Em 1992, a Brahma também veiculou uma propaganda , embalada no balanço da Bossa Nova. O histórico comercial de dois minutos de duração não só emocionou o País, mas levantou ouriçada polêmica em diferentes praias da inteligência e da cultura, de Ipanema ao Porto da Barra, que durou um verão inteiro. No centro da discussão, os cariocas Tom Jobim - vivo na época - e o poetinha Vinícius de Moraes, que já partira. Com ajuda de efeitos milagrosos de montagem, os dois cantavam em dueto empolgante, enaltecendo as delícias dos bares e da cerveja.
Os primeiros ataques não demoraram: caíram com fúria em cima de Tom, tachado de "mercenário". Sobre o falecido poeta de "Tarde em Itapoã" disseram até que nunca bebera cerveja na vida, que o poeta só tomava uísque. Invenção deslavada, mas passada adiante durante um bom tempo em textos na imprensa e em conversas maledicentes. Tom rebateu todas as críticas com refinado humor e elegante firmeza, principalmente em marcante entrevista ao Jornal do Brasil. Calou "os que não suportam quem faz sucesso no país".
O novo comercial da Vale, que ameniza a virulência e as agressões (em muitos casos também o extremo mau gosto) da propaganda do horário eleitoral encerrado nesta sexta-feira (24), realça o talento de uma dupla de baianos fora de série, que segue criando e encantando: o juazeirense João o e o soteropolitano Nizan. E levando muita porrada também.
É o caso da pecha de "louco por dinheiro" , atirada agora sobre João, 16 anos depois da polêmica da cervejaria. Não faltam pascácios para rotular o artista de "eterno mal-humorado", que sorri pela primeira vez na vida no final da propaganda da Vale. Rematada tolice de quem não conhece o criador da batida inimitável da Bossa, nunca o viu sentado nas manhãs ou fins de tardes na balaustrada do porto de Juazeiro (então eu morava na pernambucana Petrolina, na outra margem do rio São Francisco), sorridente a cada novo acorde que criava ao violão, e que surpreenderia o mundo anos depois.
Ou, ainda, sentado na calçada da casa da mãe, Dona Patu, aos beijos e abraços com a fogosa soteropolitana Astrud, para escândalo das jovens mocinhas de passagem para a igreja de Nossa Senhora das Grotas, padroeira da cidade nem tão recatada assim. E, também, na mais recente passagem de João por Salvador, há menos de um mês, quando ele foi visto rindo à toa, na alegria plena de pai temporão, ao lado da cria.
Quanto a Nizan, basta ver o incêndio no meio publicitário, iniciado com o e-mail cheio de críticas severas ao baiano, chamado de "caricatura de ser humano, doublê de político populista e novo rico deslumbrado" . Críticas, em princípio, partidas da caixa de correio eletrônico de Fabio Fernandes (diretor de criação da FNazcaS&S), segundo a Folha de S. Paulo.
João canta, encanta e deixa a resposta para a língua afiada de Nizan. Ou melhor, para os conselhos que Guanaes deu a uma turma de formandos em Publicidade e Propaganda, que o escolheu como paraninfo: "Não paute sua vida, nem sua carreira, pelo dinheiro. Ame seu ofício com todo o coração. Persiga fazer o melhor. Seja fascinado pelo realizar, que o dinheiro virá como conseqüência. Quem pensa só em dinheiro não consegue sequer ser um grande bandido, nem um grande canalha".
No meio do tiroteio e aparentes contradições, um pouco mais de João Gilberto, nos versos de Nizan, para finalizar: "Já pensou se não fosse essa fé, não fosse o que é, o que seria?". Bom voto para quem vota neste domingo.