Dos ensaios e narrativas paralelas do novo livro
de J.M. Coetzee, só os primeiros valem a pena
Jerônimo Teixeira
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O leitor que der uma espiada em Diário de um Ano Ruim (tradução de José Rubens Siqueira; Companhia das Letras; 241 páginas; 41 reais) ficará com a proverbial pulga atrás da orelha. Sua dúvida não será tanto sobre que tipo de livro ele tem em mãos – mas sobre quantos livros se encontram ali. Dois textos independentes correm pelas páginas iniciais do novo romance do Nobel de Literatura sul-africano J.M. Coetzee, separados por uma linha pontilhada. A partir da página 33, surge um terceiro bloco de palavras, e os três textos correrão em paralelo até o fim. A seção no alto da página é composta de ensaios que um escritor sul-africano residente na Austrália (como o próprio Coetzee) está escrevendo. A parte de baixo narra, em primeira pessoa, o seu dia-a-dia, com foco na fixação erótica por uma vizinha filipina. A terceira seção traz o ponto de vista dessa vizinha, convocada a trabalhar como digitadora dos textos que Señor C. (é como ela chama o escritor) dita para um gravador. O resultado é uma leitura desconfortável – o leitor nunca sabe o que ler primeiro –, que apenas parcialmente compensa o esforço exigido no vai-e-vem das páginas.
Desencantados, pessimistas, os ensaios centram-se, na primeira metade do livro, na política internacional. A crítica pesada concentra-se sobretudo no governo Bush, em sua guerra ao terrorismo e em sua pusilanimidade moral na admissão da tortura. Nos seus momentos mais fracos, a escrita assume um tom vituperativo, com notas paranóides à la Noam Chomsky. Mas há também achados de uma originalidade violenta, que derruba todas as expectativas do leitor. E os ensaios ainda reservam outros prazeres, especialmente na segunda parte, menos política e mais pessoal, com observações sobre Bach, Dostoievski, a fama literária, a educação das crianças.
Então, temos Señor C. e Anya, a secretária. Entre os dois, há um terceiro personagem, Alan, namorado da moça – um vilão esquemático, cujas teorias pragmáticas ensaiam um contraponto débil com as elevadas preocupações morais do escritor. Alan tenta usar Anya para aplicar um golpe no escritor; ela se recusa a colaborar; Alan insulta Señor C. – eis todo o enredo. O exame das dificuldades que o desejo sexual impõe a um homem de idade é tímido, se comparado ao modo como o próprio Coetzee aborda o assunto nos primeiros capítulos do extraordinário Desonra, ainda o seu livro mais poderoso. E Anya, que parece ter sido planejada para ser algo novo na ficção de Coetzee – um personagem vital, ensolarado; uma pincelada de tinta vermelha nos costumeiros tons sombrios do autor –, infelizmente é uma figura superficial e inconsistente. Temos então o livro de um pensador moral à moda antiga, cheio de ardente e contagiante indignação diante do estado em que se encontra o mundo – e pouco mais. Diário de um Ano Ruim é um excelente livro de ensaios, sustentado por um romance fraco.
A VERGONHA DA TORTURA "Um artigo numa edição recente da revista New Yorker deixa claro como o dia que a administração dos Estados Unidos, com a liderança assumida por Richard Cheney, não apenas sanciona a tortura de prisioneiros capturados na chamada guerra ao terror como age sob todos os aspectos para subverter as leis e as convenções que proíbem a tortura. Podemos, então, falar de uma administração que, embora legal no sentido de ter sido legalmente eleita, é ilegal no sentido de operar além dos limites da lei, driblando a lei e resistindo ao domínio da lei. A distinção que seus advogados traçam entre tortura e coerção é patentemente insincera. No novo sistema que criamos, dizem eles, implicitamente, os velhos poderes da vergonha foram abolidos." J.M. Coetzee, em Diário de um Ano Ruim |