Por que, mesmo antes de surgirem os indícios mais veementes, a maioria
das pessoas informadas já presumia a culpa do deputado Paulinho da
Força no esquema de corrupção desvendado pela Polícia Federal? Porque
o padrão de atuação revelado é típico do modo pelo qual, com
desenvoltura cada vez maior, as organizações sindicais e seus
representantes se estruturam para capturar pedaços do aparelho estatal
e fatias de recursos públicos.
Nesses esquemas pode ou não haver desvio de recursos para o
enriquecimento pessoal (no geral, há). O que sempre está presente é o
uso simultâneo do aparelho sindical como trampolim eleitoral e
ferramenta de extração de vantagens junto aos órgãos do governo.
Trata-se de um movimento duplo, que se reforça mutuamente, uma vez que
a conquista do mandato parlamentar facilita o acesso aos cofres
públicos, o que, por sua vez, fortalece a organização sindical e
vice-versa.
Estudos recentes, como os da professora Maria Celina D?Araújo e do
professor Leôncio Martins Rodrigues, documentam o aumento da
participação de sindicalistas entre os membros do Executivo e do
Congresso, respectivamente. Em teoria, o ingresso de novos personagens
na cena principal da vida política, combinado com a alternância no
poder, da qual tivemos um belo exemplo em 2002, seria um sinal de
vitalidade da democracia. As barreiras de classe estariam sendo
superadas e o universo da representação de interesses se abrindo a
quem antes dele não participava. Do governo "de poucos" estaríamos
passando para o governo "de muitos".
Esse é o lado bom da história. O lado ruim é que a incorporação de
sindicalistas tem significado não maior transparência no trato dos
assuntos e recursos públicos, mas, ao contrário, a reiteração, sob
novas formas, das piores tradições de apropriação privada e/ou
corporativa do espaço da representação e dos recursos públicos no
Brasil. Novos personagens, velhos vícios, o que põe em xeque os
benefícios da democratização "quantitativa" da elite política.
O corporativismo sindical não é novidade no Brasil. Nem é
exclusividade dos trabalhadores. Muito longe disso. A base
institucional de poder sobre a qual se ergue a representação setorial
do empresariado é a mesma. Para não falar no poder de fogo próprio que
os empresários têm para fazer valer seus interesses, maior do que o
dos trabalhadores, por razões óbvias.
As duas faces da estrutura corporativa nasceram sob as asas do Estado
Novo, no final dos anos 1930. A novidade está no papel que a
representação corporativa dos trabalhadores, ou melhor, da cúpula
sindical, passou a ter. As cúpulas sindicais - sobretudo agora que
parte do imposto sindical passará a fluir automaticamente para os
cofres das centrais - jamais contaram com tantos recursos cativos (e
sem fiscalização alguma, já que o presidente Lula vetou o artigo da
lei que previa a necessidade de prestação de contas ao TCU). Jamais
contaram com acesso à deliberação sobre recursos públicos tão vultosos
(fundos de pensão e FAT, principalmente). E jamais tiveram tanto poder
sobre os partidos. Comparem-se os casos do velho PTB, que subordinava
sua máquina sindical aos interesses partidários mais amplos, com o
caso do atual PDT, seu suposto herdeiro, tomado de assalto pelas
forças sindicais.
A utilização de privilégios garantidos pelo Estado para acumular
capital político e financeiro tem outros exemplos. As máquinas
político-empresarial-religiosas de algumas denominações evangélicas,
que alugam siglas partidárias e têm lugar de destaque na elite
política atual, não poderiam ter sido construídas sem o acesso a uma
das mais cobiçadas prebendas estatais: a doação, sob a mera
formalidade da concessão, de licenças para operação de emissoras de
televisão e rádio Brasil afora.
Não espanta que haja descrédito crescente em relação à política e aos
políticos. Nesse quadro, haveria espaço para a representação política
dos interesses mais difusos e universais da cidadania? A verdade é que
a captura crescente do espaço público por corporações e interesses
organizados se faz à custa do político comprometido com a
representação dos interesses mais abrangentes da sociedade. Políticos
assim são cada vez menos freqüentes. Animais em extinção, uma espécie
da qual recentemente o Brasil perdeu duas figuras exemplares: Artur da
Távola e Jefferson Péres.
A conseqüência é grave e pode agravar-se mais ainda. A gravidade está
em que a desmoralização da vida pública, em geral, e da atividade
parlamentar, em particular, faz com que delas fujam os jovens de maior
talento e melhor formação moral. Os danos para a imagem e o
funcionamento do Congresso são imensos. Em nosso sistema político, o
presidente é uma figura singular, para bem ou para mal. A ele se
admite dizer que "não sabia", diante de uma grave falha moral ou
funcional de seus auxiliares. O mau comportamento de alguns
parlamentares contamina toda a instituição, que já goza de má fama.
O problema não é só brasileiro. Em todas as pesquisas e em todos os
países, a reputação do Congresso e dos parlamentares não é das
melhores. Em vários há queixas e críticas quanto à deterioração da
qualidade dos representantes no Legislativo. Onde as tradições e
instituições são mais sólidas, os riscos para a democracia são
menores. Onde aquelas são mais frágeis, estes são maiores. Uma coisa é
certa: não pode haver vida longa para a democracia onde o Congresso e
os parlamentares não desfrutem de uma reserva razoável de prestígio.
No Brasil, para recuperá-la é preciso refazer os elos perdidos ou
jamais estabelecidos entre os representantes e os representados:
reforma do sistema eleitoral. Mas também reforma do Estado, para
proteger os cofres públicos dos negócios da política.