Os desastrados oito anos da presidência de George W Bush, os desequilíbrios da economia dos EUA, os graves problemas políticos e sociais da sociedade americana, as conseqüências da prolongada guerra do Iraque e a emergência da China como superpotência são alguns dos elementos que levam muitos analistas a considerar que o poderio de Washington está em declínio.
No último número da revista Foreign Affairs, dois interessantes artigos, “O futuro do poderio americano”, de Fareed Zacharia, e “A era da não polaridade”, de Richard Haas, merecem uma reflexão mais detida e desapaixonada pela riqueza da argumentação e pela força de suas idéias.
Pareceu-me útil resumir os principais aspectos desses artigos para um público mais amplo não só porque traçam um quadro realista - claro que do ponto de vista norte-americano - mas porque ajudam a entender o novo mundo onde o Brasil terá de interagir e onde a política externa terá de fazer as escolhas apropriadas de maneira a que não percamos mais uma vez o bonde da história.
A idéia central de Zacharia é a de que, ao contrário do Império Britânico, os EUA não são uma economia fraca nem uma sociedade decadente. O poderio econômico britânico foi desaparecendo apesar de Londres continuar a manter uma imensa influência política ao redor do mundo. No caso dos EUA, a economia e a sociedade são capazes de responder às dificuldades conjunturais e à competição econômica, pois tem uma forte capacidade de se adaptar e se ajustar. A fraqueza do “império norte-americano” (expressão não empregada no artigo) residiria na existência de um sistema político disfuncional.
Como Washington reagirá a um mundo onde os EUA terão de conviver com a emergência de outros países poderosos? Qual será a resposta a essas mudanças econômicas e de poder político no cenário internacional?
O sistema político rígido e antiquado (agora com mais de 225 anos) foi capturado pelo dinheiro, pelos interesses especiais, por uma mídia sensacionalista e por grupos ideológicos. O resultado é um incessante e virulento debate sobre trivialidades – a política como uma forma de teatro – e muito pouca substância, entendimento ou ação. O país que tudo podia está agora dominado por um processo político que nada faz, onde as disputas partidárias prevalecem sobre a solução dos problemas. Perdeu-se a noção do longo prazo e os partidos se transformaram em grandes arrecadadores de recursos para financiar as eleições, mas são péssimos para ajudar a governar (Qualquer semelhança com país muito nosso conhecido é mera coincidência).
Os EUA nas últimas duas décadas se tornaram a única superpotência global. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo, em larga medida, foi moldado conforme as percepções e os interesses americanos. Agora, no entanto, o cenário internacional passa por um dos períodos de maior transformação da história. Depois do surgimento do mundo ocidental, consolidado no final do século XVIII, e do aparecimento dos EUA no final do século XIX, estamos vivendo a terceira grande transferência de poder da era moderna, chamada pelo autor de a “emergência do resto do mundo”.
Esse novo mundo em gestação será muito diferente daqueles que o precederam. Sob diversos aspectos, industrial, financeiro, social e cultural – menos quanto ao poder militar e estratégico – a distribuição de poder está se transformando, tornando mais difícil a dominação dos EUA . Não se trata de um mundo antiamericano, mas de um mundo pós-americano, definido e orientado a partir de muitos lugares e por muitas pessoas.
Na visão de Zacharia, as grandes transformações globais não ocorrem contra os interesses dos EUA. O “resto do mundo” é que está surgindo, abraçando a economia de mercado, firmando-se como governos democráticos (de uma forma ou de outra) e assumindo uma grande abertura e transparência. Poderá ser um mundo em que os EUA tenham menos espaço, mas as idéias e os ideais norte-americanos, segundo ele, hão de prevalecer de forma poderosa.
O artigo de Richard Haas complementa essa análise sobre o futuro do poderio dos EUA, chamando a atenção para o fato de que a principal característica das relações internacionais no século XXI será a “não polaridade”: um mundo dominado não por um ou por poucos estados, mas por dezenas de atores que possuem e que exerceriam diversos tipos de poder.
Na percepção do autor, a não polaridade terá conseqüências majoritariamente negativas para os EUA e para o resto do mundo.
Alem de tornar mais difícil a liderança de Washington no momento de buscar respostas coletivas para desafios regionais ou globais, a não polaridade deixaria o país mais vulnerável às ameaças originadas de ações de estados párias (rogue states), de grupos terroristas e produtores de energia (que podem ameaçar reduzir sua produção) e de bancos centrais (cuja ação ou inação pode afetar o papel ou a força do dólar).
Segundo Haas, o multilateralismo deverá predominar nesse novo mundo não polar. Daí a necessidade de as instituições serem reformuladas para incluir as nações emergentes. A composição do Conselho de Segurança e do G-& devem ser alteradas para refletir o mundo de hoje e não o do final da Segunda Grande Guerra. Atores governamentais e não governamentais serão chamados a participar dos debates.
A não polaridade certamente tornará a atividade diplomática mais difícil e complexa. O mundo não polar significará mais atores governamentais e não governamentais. As alianças entre governos serão mais seletivas e de acordo com situações determinadas.
Obama, o candidato que mais parece personificar a idéia de mudança, talvez já seja um começo de resposta da sociedade norte-americana a esses novos tempos e realidades.
Rubens Barbosa, ex-Embaixador nos EUA e Presidente do Conselho de Comércio Exterior da Fiesp.