Entrevista:O Estado inteligente

domingo, junho 08, 2008

Pedro S. Malan Efeito voracidade

"A idéia tradicional de que o poder reside numa pessoa, uma restrita classe política ou em determinadas instituições colocadas no centro do sistema social é enganadora. Não compreendeu a estrutura ou o movimento de um sistema social, aquele que não se deu conta de que este é constituído por uma densa e complexíssima inter-relação de poderes. O poder não está apenas difuso e repartido. Ele está disposto em estratos que se distinguem um do outro por diferentes graus de visibilidade."

Norberto Bobbio

De acordo com esse critério, há três instâncias ou faixas de poder. Primeiro, há o governo do poder visível, ou seja, o poder que em democracias se exerce ou se deveria exercer publicamente, à luz do sol, e sob controle da opinião pública. Segundo, há a faixa do poder "semi-submerso": este vasto espaço ocupado pelos órgãos e entidades públicas por meio dos quais se exerce o dia-a-dia das políticas governamentais em sua dimensão operacional. Terceiro, há a faixa do poder invisível, que pode assumir três formas: um poder invisível dirigido a lutar contra o Estado (organizações criminosas, associações de delinqüência, terroristas, narcotraficantes...); um poder invisível formado e organizado não para combater o poder público, mas para extrair benefícios ilícitos e buscar vantagens que uma ação feita à luz do sol não conseguiria; e, finalmente, o poder invisível como instituição do Estado: os serviços secretos, "cuja degeneração pode dar vida a uma verdadeira forma de governo oculto".

Os dois primeiros tipos de "poder invisível" mencionados acima, bem como parte das relações espúrias entre ambos e o poder "semi-submerso" a que se refere Bobbio, foram objeto de excelente livro de M. Naim intitulado Ilícito. Para o autor, a vasta gama do tráfico em ilicitudes "corre o risco" de nunca ser compreendido e eficientemente combatido se nos restringirmos a expressões de indignação moral e apelos a comportamentos éticos - e não colocarmos "a economia e a política no centro das análises e das recomendações".

Naim insiste em que as verdadeiras motivações e os incentivos para as atividades ilícitas são econômicas (oferta e procura, risco e retorno) e políticas (no sentido de que "são os políticos e a opinião pública que definem o grosso das expectativas e dos limites às iniciativas de combate ao ilícito").

Como os incentivos econômicos são expressivos, como as formas de combate político são precárias e como os homens não são anjos, conforme notou Maddison em discurso famoso, o ilícito prolifera no mundo. De tal forma que na conferência em que apresentou seu livro, em Washington, anos atrás, Naim se referiu aos milhões de praticantes desta "arte" como "cupins", embora notando que eram cupins racionais do ponto de vista de suas motivações: a busca de retornos que cobrissem os riscos e a volatilidade inerente às operações a que se dedicavam com excepcional voracidade.

Lembrei-me de Naim e sua "cupinzada racional" ao ver na imprensa que a nossa Polícia Federal denominou de Operação Vorax a investigação que levou, dias atrás, à apreensão de R$ 7 milhões em dinheiro vivo em município que recebe royalties de petróleo e gás no valor de dezenas de milhões. A cupinzada racional local aparentemente se apropriou de uma parcela do butim. Vorax, noticiou a imprensa, é o nome de uma bactéria que se "alimenta"... de petróleo.

Mas o assalto "racional" ao erário é um fenômeno de tal magnitude no mundo que ganhou um nome, "efeito voracidade", na literatura teórica e empírica sobre problemas fiscais e crescimento econômico em sociedades caracterizadas por instituições legais e políticas menos robustas e marcadas por conflitos entre múltiplos grupos de interesse-com-poder. A literatura e seus modelos sugerem que a taxa do crescimento nestas economias é menor do que poderia ser, dado o excesso de demandas conflitantes sobre transferências e gastos públicos, bem como a propensão à tributação excessiva sobre o setor formal e mais moderno da economia - aquele que tem a mais alta taxa de retorno -, estimulando a informalidade e a ilicitude.

Nunca será demais tentar aprofundar a discussão destes temas, especialmente em países como o nosso, onde correntes de opinião ainda expressivas e em posições de poder dizem, escrevem e repetem, com respaldo político expressivo, que o Estado brasileiro é "raquítico", "nanico", que "choque de gestão é contratar gente", que a "vitamina para o nanismo é a elevação do gasto público". Ou a elevação da carga tributária, que permitiria um Estado mais ativo na escolha de setores a serem beneficiados com o acesso privilegiado a recursos públicos escassos.

Este tema sempre será controvertido, porque tanto governos quanto Estados têm suas legítimas prioridades, que deveriam expressar-se de forma transparente nos orçamentos governamentais e nas visões do futuro de suas lideranças políticas. Mas convenhamos que isto não é a mesma coisa que a pretensão de um governo de monitorar, simultaneamente e de forma centralizada, mais de 2 mil "ações de governo", das quais cerca de 60% são "obras" e o restante são "estudos e projetos em andamento". Todos, diz o discurso, controlados pelo Palácio do Planalto, como um grande projeto político e de comunicação social. Quando o PAC foi anunciado, eram 1.646 ações a serem monitoradas, das quais 912 obras e 734 "estudos e projetos em andamento". Na semana passada ficamos sabendo que são nada mais, nada menos que 2.120 as ações de governo sendo monitoradas, das quais 1.290 seriam obras e 830, estudos e projetos em andamento. Uma verdadeira usina de idéias, ações, projetos, estudos, obras e debates. No PAC tudo cabe. Inclusive o efeito voracidade e os cupins do Naim.

Felizmente, o Brasil tem muita gente decente tanto no setor público quanto no setor privado, uma relevante e informada opinião pública e um enorme ativo: uma grande imprensa livre e independente.

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