A impressão digital neste novo escândalo do governo Lula já pode ser identificada. Ele nasceu do fim da independência das agências reguladoras. Desde o primeiro dia, o governo mostrou não entender a razão de as agências serem independentes. Houve todo tipo de interferência; nomeações políticas, aparelhamento. O PT confundiu com perda de poder o que era modernização do aparelho do Estado.
Logo que começou o primeiro mandato, foi aberta a temporada de caça à independência das agências. O presidente Lula definiu a nova ordenação — que não entendeu — como “terceirização” do poder. Demitiu ou enfraqueceu quem entendia o que é uma agência, retirou poderes delas, nomeou para os cargos de direção políticos derrotados nas eleições, indicados políticos, pessoas valorizadas por suas carteirinhas ideológicas. Com atos como esses, preparou o terreno para todo tipo de impropriedade e improbidade.
Assim surgem distorções econômicas, incerteza regulatória, interferência para atender a grupos políticos e interesses privados. Assim surgem os intermediários e suas nebulosas transações.
Tudo passa a ser possível quando órgãos que regulam sofrem esse grau de desidratação de suas prerrogativas; esse grau de aparelhamento.
Todos os males sofridos pela Anac vieram desse erro original. A ex-diretora Denise Abreu, que tanta polêmica provocou, era considerada “do grupo de José Dirceu”. O também controverso ex-presidente da Anac Milton Zuanazzi era “do grupo de Dilma Rousseff”. O outro ex-diretor Leur Lomanto era um político sem mandato. Foi o caso também do atual diretor geral da Agência Nacional do Petróleo, que se qualificou para o cargo por ser ex-deputado sem mandato do PCdoB, partido da base aliada.
O governo Lula transformou as agências em apêndices dos ministérios. Ao fazer isso, produziu um recuo no tempo. Voltou-se aos departamentos anexos aos ministérios que decidiam preços dos serviços públicos; como o departamento de águas e energia elétrica, o dos combustíveis, entre outros, de viva memória e nenhuma saudade. Foi para substituir esses apêndices que surgiu a moderna regulação.
A agência é um órgão de Estado, e não do governo. A idéia é que seja um organismo independente de todas as pressões. Defende o mercado da ingerência indevida do governo; defende a sociedade das distorções criadas pelo mercado; defende as empresas participantes do abuso de poder de mercado de empresas dominantes.
As agências existem em setores regulados pois trata-se de concessionários de serviço público; por estarem em área na qual o mercado sozinho cria distorções. Uma empresa que controle uma via única de acesso — seja oleoduto, estrada ferroviária, linha de transmissão — pode impor esse poder através do veto à passagem. A agência garante o direito de passagem a todas as companhias e assim garante a competição.
No caso de haver uma empresa com poder dominante no mercado, a regulação independente dará a garantia aos grupos que queiram entrar no mesmo setor de que eles não estarão submetidos ao poder excessivo da empresa dominante. Ao regular as ações potencialmente conflituosas entre as companhias, as agências dão garantia ao próprio mercado para investir; ao combater conluio entre empresas, dão garantias ao consumidor desses serviços ou produtos.
Não são agências de defesa do consumidor propriamente ditas, como os procons, mas, ao garantirem o funcionamento do mercado, acabam protegendo os interesses e direitos do consumidor.
Seus dirigentes têm mandato e contas a prestar à sociedade. Elas têm que estar protegidas da pressão política, cujos interesses são sempre temporários e mutantes.
Têm que estar blindadas contra o risco de serem capturadas pelas empresas que atuam neste mercado.
O maior desafio da ANP, quando foi criada, era ser independente em relação ao enorme poder da Petrobras.
No começo, até conseguiu isso, porém, no governo Lula, foi gradualmente perdendo essa função até cair naquilo que é uma das distorções clássicas: um regulador controlado pela empresa que deveria regular.
Foi neste ambiente que ocorreram as transações para a compra da tradicional, admirada, mas financeiramente arruinada, Varig. Ela estava falida, mas tinha ativos valiosos. Pagar a dívida e resgatála era um modelo velho, que o governo sabiamente rejeitou. No entanto, se interferiu da forma como a exdiretora da Anac está dizendo, cometeu o pior de todos os erros. O caso é grave, precisa ser apurado. A exdiretora ficou estigmatizada por seus atos e palavras, mas agora está cumprindo o papel de trazer a público diálogos e atos inaceitáveis. O pior que o país pode fazer é não dar atenção, achando que se trata apenas de uma vingança pessoal ou de mais uma das muitas brigas intestinas do PT. Ao falar, ela está correndo riscos. Tendo provas e indícios do que relata, precisa ser levada a sério para que se façam as investigações e apurações necessárias. Já há outros depoimentos validando parte do que ela disse; existem fatos dando consistência a certos aspectos do que revelou.
Existe, sobretudo, o terreno propício a distorções nesta relação, sem transparência e limites institucionais, entre o governo e as agências reguladoras.