Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, junho 02, 2008

Miriam Leitão - A ameaça é nossa

O GLOBO


O debate brasileiro sobre a Amazônia entrou naquele desvio favorito
que o leva para longe do ponto principal. Voltou a tese xenófoba de
que a ameaça à região são os "estrangeiros". Se há estrangeiros
cometendo ilegalidades, isso é caso de polícia, mas números, fatos e
evidências mostram que são os brasileiros que estão pondo abaixo a
floresta. Infelizmente somos nós a principal ameaça.

É confortável a idéia de que o mundo cobiça e ameaça destruir o que é
nosso e que protegemos bem. O berço é esplêndido, mas não podemos
dormir com essa. Especuladores e picaretas estrangeiros sempre
existirão por lá.

Gente oferecendo pedaços do paraíso a preço barato para inglês ver em
terra onde a maioria dos títulos de propriedade é falsa sempre vai
aparecer. Mas a verdade dolorosa é que foram os brasileiros que, em
dez anos, abriram uma cratera do tamanho do Estado de São Paulo na
floresta mais rica e biodiversa do planeta. Somos nós, os donos, que
estamos pondo em risco nosso próprio patrimônio.

No debate dos últimos dias, autoridades públicas pediram o direito de
não cumprir a lei. O governador de Mato Grosso afirmou que só 25% dos
produtores do seu estado estão preparados para provar a regularidade
fundiária e ambiental exigida pela resolução do Conselho Monetário
Nacional. Ou seja, 75% dos produtores de Mato Grosso não respeitam as
leis ambientais. Um absurdo que só pode ser dito impunemente porque
nos acostumamos com o inaceitável.

Em entrevista que me concedeu na Globonews, Blairo Maggi disse que os
produtores precisam de seis meses para cumprir a resolução; ao GLOBO,
ele disse outra coisa, defendeu a extinção da resolução. O ministro
Mangabeira Unger defendeu que quem "tem o gozo da posse da terra goze
das prerrogativas da propriedade".

Será que o ministro está dizendo que quem grilou deve ficar com a
terra pública? Ainda não se sabe se é para valer a resolução que diz
que a lei é para valer, pois o presidente disse que tem 30 dias para
pensar. Ela tem prazo até 1ode julho para entrar em vigor. Tudo é
surrealista.

Antes de propor essa resolução ao CMN exigindo respeito a lei
fundiária e ambiental, o Ministério do Meio Ambiente estudou o tema e
preparou uma nota técnica. Os dados são claros.

Quando o financiamento aumenta, o desmatamento cresce. Os municípios
que mais desmatam são os que mais recebem financiamento.

Há uma correlação direta entre volume e localização do crédito e a
ampliação do crime. O país está financiando a destruição do seu
próprio patrimônio.

Aos dados: em 2006 e 2007, os estados de Mato Grosso, Pará e Rondônia
receberam 81% do crédito rural oficial para a região e foi justamente
nestes três estados onde houve 85% do desmatamento. A curva do
desmatamento e a da concessão do crédito são imagens no espelho. A
nota técnica compara os piores e os melhores na lista dos 12
municípios que mais desmatam no Pará e nos 19 que mais desmatam em
Mato Grosso. Assim: foi feita uma lista desses municípios críticos dos
quatro que mais desmataram para comparar com os quatro da lista que
menos desmataram. No Pará, os quatro piores receberam 128% mais
crédito e desmataram 300% mais que os quatro municípios melhores.

Em Mato Grosso, os quatro piores receberam 221% mais crédito e
desmataram 48% mais que os quatro municípios que menos desmataram.

Quem tem se aproveitado do crime? Nós mesmos. A madeira ilegal é
consumida no próprio Brasil. O gado que cresce nas pastagens
recém-feitas após a queima da mata vai para os açougues brasileiros. O
carvão feito lá vai para os fornos das nossas produtoras de
ferro-gusa.

É nosso o desleixo que faz com que os recursos biogenéticos da
Amazônia sejam desconhecidos. O temor da biopirataria é curioso.

Se achamos que piratas querem nos roubar, é porque temos consciência
do tesouro que guardam as matas da Amazônia; mesmo assim, as
destruímos; se sabemos que há tesouros lá, por que não tentamos nós
mesmos descobrir, usar, patentear e industrializar esses bens? Por
isso é bemvinda a proposta da Academia Brasileira de Ciências (ABC),
preparada por cientistas do nível de Bertha Becker e Carlos Nobre, de
que sejam feitos investimentos pesados na formação de pesquisadores e
em centros de pesquisas de institutos tecnológicos na Amazônia. A
proposta completa está no site da ABC (http://www.abc.org.br).

O coração verde-amarelo bate forte quando alguém sugere que ONGs,
piratas e milionários estrangeiros querem ocupar a nossa terra e nos
roubar, mas foge da luta quando é para defendêla dos crimes cometidos
por próprios brasileiros. O primeiro risco é, em parte, imaginário; o
segundo é totalmente real.

O sueco Johan Eliasch precisa explicar melhor o que disse e o que
pretende, mas, tomado pelo valor de face, está ludibriando a boa-fé
dos europeus oferecendo o que não tem; a seita do Reverendo Moon tem
imensas terras na região e é um mistério o que acontece nelas;
madeireiras da Malásia, anos atrás, foram aceitas na região, quando se
sabe o que elas já fizeram na própria Malásia.

Existem biopiratas fingindo-se de ONGs humanitárias, mas são
minoritários diante das ONGs estrangeiras, ou brasileiras, que têm
parte do seu financiamento de instituições internacionais e que estão
por lá lutando sinceramente pela preservação.

Que a xenofobia, açulada recentemente, não nos impeça de ver quem são
os inimigos e quem são os aliados.

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