O Globo |
17/6/2008 |
O uso político do Exército para apoiar um projeto assistencialista do candidato a prefeito do Rio pelo PRB, o bispo Marcelo Crivella, no Morro da Providência, está na origem de uma tragédia comparável, na história da disputa do Estado com grupos criminosos pelo controle territorial, à chacina da Candelária ou ao massacre de Vigário Geral. É assim que pode ser definida a ação dos militares que, como ato de vingança por supostos desacatos, entregaram três rapazes moradores da Providência para serem mortos por traficantes de um grupo rival do Morro da Mineira. O grave dessa história macabra é a constatação de que os 11 militares presos, inclusive um oficial, já haviam introjetado a ordem vigente nos locais do Rio dominados por traficantes de drogas ou milícias e já estavam trabalhando com as regras da ilegalidade. O fato de terem levado os rapazes para o quartel do Exército em vez de para uma delegacia já demonstra que queriam se utilizar da instituição para "dar um corretivo" em quem supostamente lhes ofendera. Ao mesmo tempo, é lícito imaginar que já tinham contatos anteriores com os traficantes, a ponto de irem ao "território inimigo", fardados e utilizando armamento e caminhão do Exército, para entregar os três rapazes que não conseguiram escapar, do grupo de cinco que inicialmente foram presos por desacato. A atuação das Forças Armadas nos conflitos urbanos sempre foi um tema polêmico, e, depois da atuação exitosa do Exército no comando da Força de Paz da ONU no Haiti, aumentou a pressão para que o mesmo esquema fosse utilizado nas áreas conflagradas do estado do Rio, sempre com uma reação cautelosa das autoridades militares. Eles não têm dúvida de que as tropas brasileiras estão preparadas para uma atuação em favelas do Rio de Janeiro, depois da experiência de campo nas favelas de Porto Príncipe. Os militares que atuaram por lá tiveram uma vivência real de combate, trocando tiros, aprendendo a reconhecer o terreno, dominando o medo, na definição dos militares que acompanham a atuação de nossas tropas. Mas as autoridades sempre ressaltaram que as diferenças são "marcantes" e têm que ser "muito bem consideradas". A começar pelo aspecto político, porque no Haiti os soldados brasileiros estão atuando "sob a égide da ONU, com regras de engajamento bem definidas e bem compreendidas pelas tropas". Ao contrário, no Brasil, o Exército não tem até hoje amparo legal para atuar nessas operações, o poder de polícia é "limitadíssimo". Nas regras do ato de engajamento da Missão de Paz, está especificado que é preciso tomar cuidado com danos colaterais, a ação tem que ter proporcionalidade de forças, mas o soldado sabe que, se enfrentar um ato hostil, pode reagir. Outra diferença ressaltada nas análises militares é que no Haiti o tráfico de drogas é mínimo, a defesa de posições dos traficantes do Rio é muito mais forte e os armamentos, mais pesados. Defendendo um comércio que rende muito dinheiro, a reação é muito mais violenta, analisam os militares. O marco legal da atuação das Forças Armadas teria que ser definido por uma legislação própria, cuja apresentação para debate o ministro da Defesa, Nelson Jobim, havia anunciado ainda para este ano, para ser aprovada pelo Congresso até o fim da legislatura. Sem isso, a missão das Forças Armadas brasileiras, definida na Constituição e em leis complementares, apenas subsidiariamente envolve a garantia da lei e da ordem. Seria preciso que a nova legislação definisse os cenários de emprego das Forças Armadas, o dimensionamento das tropas, sua capacitação específica, para que a sua utilização fosse efetiva, analisam os especialistas no assunto. No entanto, nada disso aconteceu na ação do Exército para apoio do projeto Cimento Social, do bispo Crivella, que teve uma verba de R$12 milhões do Ministério das Cidades. O Exército está no Morro da Providência desde dezembro, e, mesmo antes dessa tragédia, já houvera problema. A associação de moradores denunciara que os candidatos estavam sendo escolhidos pela preferência religiosa, isto é, os adeptos da Igreja Universal, origem do bispo Crivella, tinham prioridade na contratação com o dinheiro oficial. No fim de maio, o secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, respondendo à indagação numa audiência na Comissão de Segurança da Câmara, surpreendeu a todos afirmando que também gostaria de saber o que o Exército estava fazendo no Morro da Providência, pois jamais fora comunicado. Com esse esquema irresponsável, acabaram aproximando o Exército do tráfico, tornando claro que não é simples a utilização das Forças Armadas nesse tipo de ação. Além do mais, a tarefa dos militares era tão escancaradamente politizada que provavelmente deve ter sido difícil manter a disciplina entre os que eram usados em missão nada institucional. Todos os candidatos à prefeitura do Rio, mesmo os da base aliada do governo federal, estão entrando com representações nos diversos órgãos que controlam as eleições, exigindo explicações do governo para a utilização do Exército em um projeto pessoal de um candidato, que além do mais era realizado por uma empresa particular. O fato de o bispo Marcelo Crivella ter o apoio explícito do presidente Lula, que recentemente disse que não poderia apoiar o candidato do PT porque tinha uma amizade muito grande com Crivella, leva a que o presidente seja acusado de ter interferido diretamente para que o Exército ajudasse no projeto. É um fato muito grave que marcou tragicamente o processo eleitoral no Rio e também marcará o Exército brasileiro. |
Entrevista:O Estado inteligente
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