Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, junho 18, 2008

Merval Pereira - A força da lei




O Globo
18/6/2008

O economista Sérgio Besserman, ex-presidente do IBGE, atual presidente do Instituto Pereira Passos da prefeitura do Rio, tem uma tese no mínimo instigante sobre a questão das favelas, discordando do diagnóstico generalizado de que a violência dos traficantes e milicianos tomou conta dos morros do Rio pelo abandono a que essas áreas foram relegadas pelos governos nos últimos anos. Esse diagnóstico, que é feito inclusive pelo governador do Rio, Sérgio Cabral, não corresponde à realidade, segundo Besserman, que afirma: "Não é questão de carência, que existe, na favela e fora da favela também". Para ele, "a questão central é o território onde o Estado não tem o monopólio da força, tanto faz serem prédios quanto favelas ou loteamentos."

Com base em tabelas com indicadores socioeconômicos de algumas grandes favelas do Rio, ele procura demonstrar que, apesar de carentes de diversos serviços públicos, "essa não pode ser a base da explicação para o fenômeno do controle do território pela bandidagem de diversos tipos, já que os indicadores são melhores ou iguais aos dos municípios da região metropolitana".

Mesmo considerados os ricos, a classe média, o conjunto das atividades produtivas, como no caso de Duque de Caxias, onde há a refinaria, a realidade revelada pelo Censo de 2000, o último realizado - "e só pode ter melhorado de lá para cá", comenta Besserman, que era o presidente do IBGE naquela ocasião - mostra que no Complexo do Alemão há a mesma proporção de pobres que em Duque de Caxias: 29%. E a coleta de lixo em Caxias é pior do que no Complexo do Alemão: 88,9% contra 98,4%.

Aliás, segundo os dados do censo, as favelas de Cidade de Deus, Rocinha, Jacarezinho, Maré e Complexo do Alemão têm um índice de coleta de lixo muito semelhante ao da cidade do Rio de Janeiro, acima de 98%. Até em saneamento, com exceção da Rocinha, que tem um índice muito baixo - 63,1% - todas as demais favelas são melhores do que a maioria dos municípios da Baixada, inclusive Nova Iguaçu, com 80,4%, e Belford Roxo, com 88,4%. E chegam a ter índices melhores do que a própria capital.

Segundo os dados de Besserman, enquanto o índice de saneamento do Rio é de 93,6%, o da Maré é de 94,9% e o do Complexo do Alemão é de 96,9%. O presidente do Instituto Pereira Passos faz questão de advertir que não considera que não haja problemas nas comunidades carentes, e que devem ser feitas obras sociais nesses locais. Lembra que, por exemplo, Manguinhos tem falta de saneamento, as favelas novas da Zona Oeste têm falta de saneamento, mas outras comunidades carentes não têm problemas desse tipo.

Vagas na escola, por exemplo, ele garante que 100% das crianças têm. Segundo ele, "pode haver uma discussão sobre se a escola deve ser dentro da favela, perto do conflito, ou fora dela". Dá um exemplo da Gávea, que tem uma escola pública em que 98% dos estudantes são da Rocinha.

Também o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das favelas é muito parecido com o dos municípios da Baixada, garante Besserman. O IDH é um mecanismo utilizado pela ONU para medição da qualidade de vida de um povo, criado pelo economista paquistanês Mahbub ul Haq e pelo Prêmio Nobel Amartya Sem, que leva em conta a escolaridade, a expectativa de vida, o poder de compra e outros fatores. Quanto mais próximo de 1, mais alta a qualidade de vida.

Por essa medida, o IDH das cinco regiões carentes analisadas - Cidade de Deus, Rocinha, Jacarezinho, Maré e Complexo do Alemão - fica entre 0,71 e 0,75, no mesmo nível de municípios como Belford Roxo e Duque de Caxias, e pouco abaixo de Nova Iguaçu. Sérgio Besserman considera que a questão central é "o controle do território de forma a que o Estado não tenha o monopólio da força. Se o Estado não tem esse monopólio, esses territórios estão fora da órbita da Constituição brasileira, fora do estado democrático de direito".

Ele dá um exemplo: "Se amanhã o Novo Leblon, ou o Jardim Pernambuco (condomínios de classe média e alta no Rio) fossem tomados por um bando qualquer, uma milícia, ou o tráfico, no dia seguinte estava todo mundo lá: Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia Federal, Polícia Militar, Polícia Civil. E não seria para acabar com o tráfico, mas para libertar o território, proteger os cidadãos, garantir que ali o Estado tem o monopólio da força".

A Cruzada São Sebastião, no Leblon, um conjunto habitacional construído por Dom Hélder Câmara em 1955 para abrigar favelados, seria outro exemplo concreto de como a questão não se resume a carências sociais: "Tem saneamento, são prédios, num local bom, mas lá o Estado não tem o monopólio da força, quem domina é o tráfico".

Besserman conta que certa vez estava no Bope para entregar um mapa do Complexo do Alemão e, conversando com um sargento, entendeu a lógica do que seja uma "favela". O sargento discordava da denominação de certas áreas catalogadas como "de favela". "E depois mostrou a Cidade Alta, que são prédios, e disse que ali era um favelão brabo".

Para ele, o principal serviço público que o Estado está deixando de oferecer a essas populações é a segurança. "Não a segurança de não ter crime, de não ter tráfico, mas a segurança de a pessoa poder andar livremente. Se alguém andar com um rifle na minha rua, vai levar um tiro. Se vai ter tráfico em Botafogo, em Copacabana, no Recreio, combatam o tráfico com inteligência. Mas a rua, a praça, o poder tem que ser do povo, através do Estado".

Sérgio Besserman diz que o que ocorreu no Morro da Providência "é a prova cabal de que, se o Estado não recupera o monopólio da força, a tendência é que inclusive os poderes estatais presentes acabem tendo que se relacionar com a outra força existente".

Arquivo do blog