O Globo |
19/6/2008 |
Há um erro de enfoque nos que usam os acontecimentos do Morro da Providência como argumento contra a atuação das Forças Armadas no combate à criminalidade urbana. Quando se critica a atuação dos militares, especialmente depois da trágica represália que acabou na morte de três rapazes entregues ao bando de traficantes de um morro rival, não se quer negar, pelo menos no meu caso, que as Forças Armadas possam, ou devam, atuar no combate ao crime organizado nas favelas da cidade. Apenas não é possível uma atuação eficiente e organizada sem que a legislação existente dê as condições para essa atuação, e sem que as tropas sejam devidamente adestradas para esse trabalho de campo. Ao contrário, o que acontecia no Morro da Providência era a utilização de tropas do Exército para a proteção de obras assistencialistas do bispo Marcelo Crivella, candidato preferido de Lula a prefeito do Rio, o que por si só vulgariza a presença dos militares aos olhos da comunidade local. Oficialmente, a presença dos militares limitava-se à ajuda na construção de casas e segurança nos locais de trabalho. Se fosse só isso, seria perigoso mesmo assim, pois, segundo especialistas, o uso de soldados sem um adestramento especial e a presença continuada em áreas de risco expõem a tropa ao desgaste e a conflitos com a comunidade a que deveria servir. Mas o mais grave é que, mesmo sem o apoio constitucional, as tropas atuando no Morro da Providência receberam orientações para "a manutenção da ordem e da segurança pública no Estado do Rio de Janeiro" dentro do programa "Cimento Social". Uma das orientações era para o caso de a tropa se deparar com "elementos civis portadores de armas e explosivos". Ora, é impossível passar cerca de sete meses na Providência e não se deparar com "elementos" armados. Não há notícia, no entanto, de que algum desses "elementos" tenha sido preso no período e nem de que o tráfico de drogas tenha sido interrompido. O que nos leva à constatação, confirmada por fontes militares e pelos depoimentos dos soldados presos, de que o Exército limitou-se a demarcar um território onde o crime não poderia acontecer, mas fez vista grossa ao que ocorria ao redor. Essa ambigüidade de funções e de atuação certamente ajudou a que os soldados perdessem a capacidade de distinguir entre o legal e o ilegal. O depoimento à polícia descrevendo o sargento Maia "com as mãos levantadas e acenando, tentando demonstrar que estavam em paz" e depois "iniciando uma conversa com o grupo de armadas da favela" é simplesmente aterrador. Mostra, numa trágica simbologia, que os soldados e o oficial negociavam com os traficantes do Morro da Mineira, reconhecendo-os como um "poder local", responsável pela justiça. Uma justiça, aliás, que o oficial considerou mais adequada do que a ordem de seu superior para liberar os rapazes presos. É nesse ponto que voltamos à tese do presidente do Instituto Pereira Passos, da prefeitura do Rio, Sérgio Besserman, exposta na coluna de ontem, segundo a qual a questão crucial nas favelas não são as carências sociais, mas a falta de controle territorial pelo Estado. Para Alfredo Sirkis, dirigente do Partido Verde, o diagnóstico de Besserman é correto, e ,"se formos analisar a mobilidade social dos vários segmentos sociais cariocas, nos últimos 20 anos, certamente boa parte dos moradores das favelas, mais próximas das áreas ricas, figurarão como os mais fortemente ascendentes, pelo menos em termos de acesso a um padrão de consumo de classe média. Isso resulta, em parte, da forte dinâmica da economia informal, hiperliberal, nessas áreas". Já a vereadora Aspásia Camargo, também do PV, discorda. Segundo ela, "o reducionismo na abordagem da favelização descontrolada não contribui em nada para o enfrentamento de nossos mais graves problemas", o principal deles o que chama de "desconstrução do urbanismo", na sua visão "uma conquista irreversível dos países civilizados, que impôs de maneira universal e definitiva a criação e o uso coletivo e ordenado do espaço público através da distribuição de ruas, avenidas, calçadas e praças, do distanciamento e distribuição racional das moradias e outras regras edilícias que impedem o adensamento excessivo e garantem adequadas condições sanitárias à população". Aspásia diz que "a densidade demográfica sem arruamento, combinada com a informalidade, cria refúgios seguros e atrai a criminalidade, alimentando as milícias. Afinal, quem, senão os criminosos, irá garantir a cobrança de serviços irregulares e do aluguel das casas construídas pela indústria da invasão e da construção civil clandestina?" A vereadora Andrea Gouvêa Vieira, do PSDB, por sua vez, considera "um absurdo" a falta de informações atualizadas, pois o censo de 2000, utilizado por Besserman na sua análise da situação social das favelas, já não reflete a realidade da cidade. "Em 2000, havia 700 favelas, hoje há 1500. Rocinha, Alemão, Maré, Jacarezinho duplicaram, no mínimo, de tamanho, seja na horizontal, seja na vertical", diz a vereadora. Para ela, o que realmente diferencia a cidade não é sequer onde há ou não segurança no sentido estrito, pois "essa já não existe em lugar nenhum da cidade, onde todos sentem medo e quem pode paga segurança privada". O problema para a vereadora "é a falta de acesso à Justiça. Em comunidades, loteamentos, até mesmo condomínios de baixa renda, as questões do dia-a-dia são resolvidas pelo tribunal paralelo". Para isso, ressalta, "contribuiu fortemente a ausência do Estado, particularmente da prefeitura, que preferiu terceirizar os serviços públicos nessas comunidades, loteando politicamente as áreas, sem a menor fiscalização das ações. Essa forma de administrar isolou mais ainda as áreas do resto da cidade formal, facilitando o controle do poder local". |
Entrevista:O Estado inteligente
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