Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, junho 19, 2008

Jânio de Freitas - Versões sem fatos




Folha de S. Paulo
19/6/2008

A única "certeza" do inquérito, a de que "o tenente ordenou a entrega" dos três rapazes a bandidos, não tem valor algum

APESAR DE ADMITIR que, até agora, apenas "há a certeza de que o tenente ordenou a entrega" dos três rapazes a bandidos, o encarregado do inquérito policial avisa que em mais quatro a cinco dias, ou segunda-feira, dará por encerrado o seu trabalho. Ainda assim, não é o caso de criticar a polícia: os limites impostos à sua ação pelo corporativismo militar, sempre que há oficial envolvido em incidente ou em ato criminoso, é velha norma brasileira. Mas nada impede que se exponham, em tal sentido, algumas evidências, e outros tantos questionamentos aos dois inquéritos, o militar e o policial.
Por que não é considerado, para nada, o depoimento da mãe que disse, no decorrer ainda dos acontecimentos, ter visto o filho "caído ensanguentado" no quartel do Exército onde esteve preso? Os militares envolvidos têm autoridade moral e fé pública, mesmo com a confissão parcial do seu ato facinoroso, para que sua versão invalide o depoimento da senhora que falou antes de qualquer tentativa de intimidá-la? Desprezar a priori o seu depoimento equivale a não lhe reconhecer nem a existência.
Até ontem, passados já quatro dias da prisão e assassinato dos três rapazes, a senhora que viu o filho não foi ouvida nem procurada para sê-lo.
A versão dos envolvidos foi aceita de imediato como verdade, sem investigação alguma. As autoridades que os recriminam são as mesmas que logo adotaram e difundem essa pretensa verdade muito conveniente aos envolvidos e ao Exército.
Aos envolvidos: por sua narrativa, erraram ao entregar os rapazes, mas não os torturaram nem os entregaram para mais do que um castigo, nunca para serem assassinados. O prato está pronto para a defesa: abuso de poder ou, como dizem do passado, "um excesso". Nada mais.
Ao Exército: um preso "caído ensanguentado" no quartel e, no dia seguinte, encontrado morto? Outra vez isso?
As versões não apagam a indagação essencial: o que houve e onde houve para que a mãe de um dos rapazes dissesse que o viu ensanguentado? Nem a única "certeza" do inquérito, a de que "o tenente ordenou a entrega", tem valor algum: está baseada nos depoimentos dos beneficiados pela versão da entrega e nada mais.
Tudo se encaminha para conclusões tão convincentes quanto o humorístico achado, em uma caixa d"água cheia e favelada, daqueles fuzis levados por assalto a outro quartel do Exército. Era "questão de honra" recuperar as armas, só não disseram, depois, que não precisavam ser as mesmas, podiam ser velhas e carcomidas por ferrugem, sem várias partes. O pessoal da imprensa, e da TV nem se fale, costuma ser muito colaborativo com boas causas militares.
Tanto que os métodos de domar inquéritos mudaram muito. Invadir e devastar delegacias era praxe contra a detenção de soldados desordeiros ou criminosos. Alguns delegados insistiam, por brio, em fazer detenções, o que deu aos pára-quedistas sua incomparável folha corrida em destruição de bens do Estado. Com a ditadura militar, o atrevimento dos delegados percebeu-se fora de época. E o fim da ditadura não foi para tudo, com heranças militares, e algumas outras, bem perceptíveis. Como a morte dos três rapazes e mais acontecimentos paralelos e muito graves, inclusive na própria Academia Militar de Agulhas Negras. Dos quais, também, a sociedade não recebe satisfações convincentes.

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