Entrevista:O Estado inteligente

domingo, junho 15, 2008

Daniel Piza

Lisboa revisitada

Pior do que um governo cínico é um governo cínico que se diz utópico.

É comum brasileiro ir a Portugal em busca de um pequeno Brasil como português vir ao Brasil em busca de um imenso Portugal, ambos identificando vantagens e desvantagens. Há obviamente muitas coisas em comum, como o sentimentalismo - que pode ser ou doçura e hospitalidade ou orgulho e provincianismo - e a própria mania de autoflagelação, de dizer ''isto aqui não tem jeito'' como subproduto do ''isto aqui poderia ter sido grande''. Por que pensar o tempo todo em algo que se diz odiar? Só se esse ódio não passar de amor frustrado. Até cabeças independentes oscilaram nessa gangorra.

Brasileiros adoram contar piada sobre português e demonizar a ''herança ibérica''. Os portugueses são literais demais, sim (perguntei a um garçom de onde vinha a lagosta e ele respondeu: ''Da costa''), e autores como Sérgio Buarque de Holanda (para não falar em Adam Smith) mostraram com clareza o atraso capitalista da colonização latina. Mas por trás das piadas talvez esteja um desejo de expiação da própria desmemória e desorganização - vide a burocracia que eles e nós ainda enfrentamos todo dia -, e seguir culpando a colonização depois de quase 200 anos de independência é pueril.

Há também quem diga que a formação lusitana nos proporcionou esta maneira de ser, esta democracia racial e cordial, em contraposição à agressividade racista de outras nações européias. Bem, já passou da hora de enxergar que a modernidade pede muito mais que descontração. Somos, por sinal, menos formais e mal-humorados do que os portugueses em média, mas por isso mesmo se criou a noção de que somos únicos no planeta. É como se o Brasil ainda fosse a encarnação possível do império que dom Sebastião deixou escapar. Os portugueses são os primeiros a elogiar o ''potencial'' da gigante ex-colônia.

Isso se vê claramente no romance Rio das Flores, de Miguel Souza Tavares (Companhia das Letras), autor de Equador. Tavares, manipulador hábil de clichês do romance histórico (embora não capte a fala popular brasileira e insista em grafar São Paulo como ''S. Paulo''), descreve dois irmãos que crescem no Alentejo sob um pai direitista e se dividem quando chega o Estado Novo de Salazar. Um deles, Diogo, vem ao Brasil tentar nova vida, se apaixona por uma mulata e, mesmo sob outro Estado Novo, o de Getúlio, se compraz na alegria sensual ''que brotava das montanhas e florestas''... Até o vira-casaca de Getúlio na Segunda Guerra é elogiado.

Portugal consome em massa a música e a TV do Brasil. Ao mesmo tempo, conhece pouco a literatura brasileira, enquanto nós estudamos a portuguesa em nossas escolas, e se queixa do acordo ortográfico como se fosse um gesto imperialista às avessas. (O acordo não é quase nada. Tem coisas boas, como a extinção de alguns acentos que facilitaria o ensino, e ruins, como a incapacidade de admitir duas grafias para uma mesma palavra, como em inglês se faz com ''theatre'' e ''theater''. Logo, sendo quase nada, não é necessário.) A dupla Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, em Os Brasileiros (Língua Geral), diz, sintomaticamente, ''tu, português, não vales mais que ele, brasileiro''.

Portugal amarga crescimento de 1,6% neste ano e vê ressurgir a nostalgia salazarista, mas melhorou muito depois da inserção na Europa. O Brasil mudou ainda mais ao longo do século 20, até pelos outros fluxos de imigração (italianos, japoneses, libaneses), e especialmente a partir dos anos JK - que tinha lá seus negócios em Portugal - desenvolveu identidade cultural mais própria. Só que ainda é pensado e governado como se não, como se ainda fosse o ''sonho das eras português''.

Passeando e comendo pelas ruas de Lisboa, ao contrário do que disse Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, não precisamos revisitar nenhuma mágoa nem reclamar que ''nada sois que eu me sinta''. Apenas saborear suas doçuras, livres de orgulho salgado.

RODAPÉ

É comum que livros aguardados por muito tempo terminem decepcionando, até pela dimensão da expectativa. Mas Veneno Remédio - O Futebol e o Brasil, de José Miguel Wisnik (Companhia das Letras), não satisfaz em suas 446 páginas. Trata-se de uma leitura barroca, que supersignifica cada elemento, que precisa de muitas páginas para dizer coisas que uma frase simples diria (como a de que a convulsão de Ronaldo em 1998 permanece um ''enigma'') ou recorre a citações para lhe dar pompa (não é preciso citar um professor de história da arte para estabelecer o batido e ligeiro paralelo entre Machado de Assis e Pelé). Essa moda da hiperintelectualização do futebol causa o efeito contrário ao pretendido, afastando ainda mais os torcedores e a reflexão.

Logo no início, Wisnik diz que numa partida ''o avanço numérico é um acontecimento entre outros'' - traduzindo, ''o gol é um detalhe''. Bem, vá dizer isso a Pelé... Em outro momento, chama de ''funcionais'' os dribles de Ronaldo, sem ''jogo de cintura''. Agora pense naquela pedalada para cima do goleiro de Gana em 2006: era a única forma de realizar a função do gol? Não exibiu a tal da ginga? O problema é que Wisnik se inscreve na velha idéia nacional do futebol como expressão ''dionisíaca'', ''poética'' (termo que Pasolini aplicou também aos gols, não apenas aos dribles), fundamentalmente ''mestiça'', na linha freyriana que os irmãos Mario Filho e Nelson Rodrigues tornaram célebre e a intelectualidade paulista transformou em teoria redentora.

Recentemente, Pelé divergiu desse lugar-comum de que o Brasil não vencia Copas por causa do ''complexo de inferioridade'', notando que em 1950 aconteceu justamente o contrário: a nação já cantava vitória sobre o Uruguai. Sim, uma das razões de o Brasil ser bom no futebol foi o mero surgimento de grandes jogadores naquele momento nacional. Mas Wisnik não a cita; prefere cair no exagero essencialista, pois o futebol brasileiro seria a vitória do ''sonho da civilização avançada combinado inesperadamente com a gratificação das disposições infantis, num plano lúdico-artístico'' (sic). O futebol mostraria ao Brasil, portanto, como ser civilizado e desreprimido ao mesmo tempo. É muita coisa para um jogo de bola... Futebol pode inspirar, não expiar.

LÁGRIMAS

Meu período de férias teve muitas mortes a lamentar: Bo Diddley, um dos pais do rock; Sidney Pollack, de quem assisti na TV portuguesa a um documentário muito bom sobre o arquiteto Frank Gehry; Yves Saint-Laurent, mestre da elegância da mulher urbana profissional.

Abro um parágrafo para falar de Dino Risi. Sem ser um equivalente de Fellini, Visconti, De Sica, Antonioni ou Bertolucci, ele fez dois filmes que estão na história tanto quanto os deles: Aquele Que Sabe Viver (Il Sorpasso, ou seja, ''a ultrapassagem'') e Perfume de Mulher, ambos com Vittorio Gassman e uma mescla rara de comédia com tristeza. O primeiro, em que Gassman corre Itália com seu Lancia em busca de diversão, tem passagens hilárias como aquela em que a mulher encosta nele quando dançam, faz uma expressão de (boa) surpresa e ele diz: ''Modestamente...'' O segundo tem uma compreensão da solidão do personagem cego, com sua melancolia e malícia nos tetos de ardósia de Gênova, que o triunfalismo de Hollywood jamais poderia atingir.

POR QUE NÃO ME UFANO

O governo Lula conseguiu mais um ''nunca antes'': nunca antes desde 1996 o Brasil teve uma inflação em maio tão alta... Também o PIB divulgado vai contra seu discurso de que a economia já tinha atingido o ''patamar sustentável'' de 5%. Movido pelos gastos públicos, com poupança baixa e balança em queda, ele aponta para número inferior já em 2008 e, por efeito da atual elevação dos juros, menor ainda em 2009. E ainda querem que o cidadão, tungado pela alta dos alimentos, pague novo tributo, a CSS (contribuição social à safadeza?), e engula um a um todos os escândalos de corrupção que seguem, como a venda suspeita da VarigLog por ação de Dirceu Rousseff - digo, Dilma - e do compadre do presidente, a tunga do BNDES por Paulinho e senhora, etc. Dize-me com quem te alias politicamente e eu te direi quem és.

A ''oposição'' tucana (entre aspas porque mal existe) se esforça em se igualar ao governo. O Detran em São Paulo, a Secretaria de Segurança no Rio Grande do Sul, o caso Alstom - tudo prolonga o modo oligárquico do poder à brasileira. E a explosão da cratera do metrô Pinheiros, segundo o laudo técnico, lança ao ar nada menos que uma dúzia de erros cometidos, em vez da ''fatalidade'' alegada de imediato pelas autoridades públicas.

Apenas a aprovação da pesquisa com células-tronco foi alento nos últimos tempos. Os otimistas que me perdoem, mas crítica é fundamental.

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