Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, junho 11, 2008

A crise silenciosa- Sandra Cavalcanti


ARTIGO
O Estado de S. Paulo
11/6/2008

Há 35 anos, o professor americano Stuart Udall lançava um livro exatamente com este título: A Crise Silenciosa.Tive o privilégio de recebê-lo, de presente, trazido por Carlos Lacerda, que após vitorioso esforço retornava de Washington com o financiamento necessário para executar o gigantesco e histórico projeto do Sistema Guandu. No ano passado, um júri de especialistas mundiais em engenharia elegeu esse projeto como o mais importante entre todos os executados no século passado! Passou tudo em misterioso silêncio...

O livro, que Carlos Lacerda já lera, era realmente fascinante! E pioneiro! Naqueles dias, aqui, em nosso país, eram poucos os que revelavam preocupações com o meio ambiente. A palavra ecologia ainda estava ausente de quase todos os vocabulários. Quando muito, havia quem desse notícia das lutas conservacionistas que, começadas nos EUA no século 18, ainda estavam em plena batalha. No livro, Stuart Udall fazia um narrativa emocionante da luta conservacionista nos EUA desde os primórdios de 1800, mas alertava para os males maiores que ainda estavam à espreita no mundo. O prefácio vinha assinado pelo presidente Kennedy.

Em sua curta administração, terminada de forma tão trágica, deixou ele, para os americanos, a mais bem articulada e factível legislação sobre o uso da água, a defesa dos mananciais, a recuperação dos que já estavam sendo deteriorados, a distribuição correta e a qualidade da água a ser fornecida. Era essa a sua visão de ambientalista.

Não por acaso, no prefácio ele formulava a seguinte pergunta: “Pode-se considerar bem-sucedida uma sociedade que cria condições prejudiciais aos seus espíritos mais esclarecidos e converte em deserto as suas mais belas paisagens?” E concluía sustentando a tese de que nós, “em termos políticos, devemos ampliar o conceito de conservação, para atender aos problemas imperiosos dos novos tempos.”

Entusiasmado com o livro e achando que já era hora de começar a acordar a sociedade para a importância do meio ambiente e sua defesa, Carlos Lacerda convenceu o amigo David Nasser a fazer a tradução. O resultado foi um primoroso trabalho, ao qual ele acrescentou dados e informações sobre a situação do problema ambiental em nosso país.

Passados todos estes anos, a dramática indagação feita por Udall ainda continua viva: “De que serve a abundância material, se criamos um ambiente em que os atributos mais altos e específicos do ser humano não podem ser exercidos? Cada geração tem um encontro marcado com a terra, pois, apesar de nossos títulos hereditários e reivindicações de posse, somos todos arrendatários transitórios deste planeta.” Em vários países, respostas consistentes foram dadas. Várias nações obtiveram expressivas vitórias. Conseguiram refazer e conservar as matas. Estão revitalizando rios e lagos.

E aqui, no Brasil, como estamos? Já estamos em 2008! Entre o governo de Carlos Lacerda e os dias de hoje, mais de meio século! Ele subiu de burrico até o topo da Pedra Branca. Tomou providências enérgicas para que a devastação da mata atlântica não continuasse.

Ao deslocar os moradores favelados do Morro do Pasmado, reflorestou toda a colina e impediu um projeto federal de erguer ali um hotel da rede Hilton. Transformou o Aterro do Flamengo, destinado a ser uma grande negociata imobiliária, no maior parque urbano do mundo, maior que o Central Park ou o de Palermo. E mais: impediu que o Parque Lage fosse ocupado por muitos edifícios e um cemitério, ganhando com isso a implacável oposição de todo o grupo do jornal O Globo. Deu aos cariocas, de volta, as areias da Praia de Botafogo. Usou um processo inovador para formar a Praia de Ramos. Deslocou mais de oito favelas para condomínios de casas populares, a fim de despoluir a Baía de Guanabara. Implantou um interceptor oceânico para receber as redes de esgotos e galerias pluviais da orla marítima. E, de forma fantástica, devolveu ao povo do Rio a condição civilizada de ter fornecimento normal de água, após meio século sofrimentos.

Carlos Lacerda foi o maior ambientalista de seu tempo. Ele amava a natureza e tinha diante dela a atitude de um verdadeiro ecologista. A reportagem que fez nos anos 50 sobre a tragédia do Rio São Francisco aí está, como um brado de alerta. Era um caprichoso cultivador de rosas. Gostava de pássaros e animais. Encontrou meios modernos para ajudar os pescadores das várias cooperativas de nossa Guanabara. E até mesmo quando ficamos encarregados de acolher centenas de garotos de rua que vagavam por aí, destinou-lhes, como escola e lar, a Fazenda Modelo, em Guaratiba. Em matéria de defesa da natureza, conservação do meio ambiente, recuperação de áreas contaminadas, redes de água, galerias pluviais e esgotos, ninguém o superou.

Quando vejo todo este auê por conta do meio ambiente e leio as asneiras que as autoridades de plantão e os pseudo-ecologistas, orientados pelas ONGs e pelo Greenpeace, dizem sobre a Amazônia; quando identifico programas populistas e eleitoreiros por trás de supostas obras; quando vejo os centros urbanos capturados pelos poderes clandestinos, totalmente favelizados; quando percebo que o objetivo de governar foi substituído pelo show business; quando tudo isso acontece, tenho certeza que dias difíceis estão por vir!

O pior é que não temos em quem confiar. Já não se fazem figuras públicas de verdade. Fazem-se figuras populares. Estamos em plena era do pão e circo.

Não vivemos tão-somente a devastação da mata atlântica ou da floresta amazônica. A devastação devastadora, em nossos dias, é a de ordem moral. São os sonhos, os ideais que estão por aí reduzidos a cinzas. Eles não oxigenam mais a nossa vida.

Essa é a crise silenciosa, a chuva ácida da desesperança que desce dos céus, provocada por este crematório de valores em que estamos sendo, também, consumidos. Que falta faz uma figura de estadista! Por isso me lembrei de Carlos Lacerda.

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