Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, fevereiro 28, 2007

China: outros sustos podem acontecer



A melhora na Bolsa de Xangai hoje não foi seguida por outras bolsas, que continuaram negativas, mas o mais importante neste episódio foi o aviso que ficou: a economia chinesa está crescendo com muitos desequilíbrios, e isso pode provocar outros sustos, como o desta semana, ao longo do ano.


A economia chinesa cresce com câmbio controlado, provocando uma situação absurda: a economia que mais aumenta sua exportação no mundo tem sua moeda valorizada por decreto.


Há uma total falta de regulação e de transparência na economia chinesa, que recebe doses maciças de capital. Na verdade, esses investidores estão lá porque a economia cresce, e a há chance de uma boa realização de lucro, mas não porque saibam exatamente as regras e garantias em torno do dinheiro investido.


Há problemas ambientais cada vez mais severos na China.


Ou seja: um dos motores da economia mundial é um mistério cheio de distorções escondidas do público por ser um governo ditatorial. Sustos como esse podem voltar a acontecer.

O PIB e alguma alegoria Por Reinaldo Azevedo

O IBGE divulgou, vocês viram, o índice de crescimento do ano passado: 2,9%. Ele passará por uma revisão, submetido a uma nova metodologia, mas é por aí. Antes que avance com alguma outra consideração, quero relembrar o conteúdo de duas notas aqui publicadas já faz tempo:

Trecho de uma nota deste blog de 30 de agosto:
Nos primeiros quatro anos (1995-1998), a média de crescimento do governo FHC foi de 2,57% (4,22%, 2,66%, 3,27% e 0,13%); no segundo (1999-2002), de 2,09% (0,79%, 4,36%, 1,31% e 1,93%). Houve apagão em 2001 e Lulão em 2002. O petista vive os melhores quatro anos da economia mundial do pós-guerra. As exportações, no período, dobraram de tamanho; o risco país, de fato, despencou — as taxas reais de juros, no entanto, continuam estratosféricas.

Trecho de uma nota desta blog de 8 de novembro
A economista Cristiane Quartaroli, do banco Santander, também revisará as projeções para 2006. Atualmente, a previsão do banco aponta uma expansão de 3,1% para o PIB. 'Devemos mudar o número para um nível abaixo de 3%', afirmou. Mauricio Oreng, economista da Itaú Corretora, deve revisar sua atual projeção de 3,4%, para algo próximo de 3,2%. O ABN Amro Asset Management reduziu a estimativa de crescimento de 3% para 2,9%.” (...) Estando certo o ABN, os números do espetáculo do crescimento petista serão os seguintes:
2003 – 0,5%
2004 – 4,9%
2005 – 2,3%
2006 – 2,9%
Média: 2,65%

De volta aos dias de hoje
Enquanto eu redigia aquela nota de 8 de novembro, faltando menos de dois meses para terminar o ano, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, jurava que o país cresceria 4%. Enquanto eu redigia aquela nota de agosto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, faltando menos de quatro meses para encerrar o ano, jurava que o país cresceria 5% — “ozeconomistas” afinados com o governo eram menos otimistas: apostavam em 3,6%... Pesquisem para ver.
Acho uma certa facilidade retórica esse negócio de dizer: “Ah, só crescemos mais do que o Haiti”, embora, é fato, só tenhamos crescido mais do que o Haiti... Na contabilidade geral, entram números mágicos como o crescimento de 12,5% de Cuba e de 10% da Venezuela. Esta, por causa do petróleo, e aquela, do conjunto da obra, apontam para números que não podem ser levados a sério. Acho que o ponto não é esse.
O que interessa é saber como o Brasil está se aproveitando do ciclo de expansão da economia mundial — em suma, interessa saber se estamos ganhando terreno ou cedendo. Há muito tempo o Brasil cresce menos do que o mundo: na década de 90, perdemos de 2,7% a 3,4%. No ano passado, 2,9% a 5,1%. O resumo da ópera é o seguinte: a média de crescimento do governo Lula é igual à do governo FHC, mas, na comparação com o mundo, o país cresce bem menos. E isso tudo sem crise nenhuma.
A sacudidela no mercado chinês, como aqui se disse, é um ajuste passageiro, nada que aponte para o caos. Mas foi uma evidência de que a economia deve desacelerar um pouco. O mesmo deve acontecer com os Estados Unidos. Há uma boa chance de que o melhor da festa já tenha passado.
Estêvão Kopschitz, economista do Ipea, falou à Folha On Line: “O que impede um crescimento maior não é a conjuntura, mas fatores estruturais. É o baixo nível de investimento há muito anos. Nem investimento público nem ambiente favorável para o investimento privado, além de uma carga tributária causada pelo aumento das despesas do governo."

Alegorias
Pode ser que o Brasil esteja condenado ao baixo crescimento em razão, sei lá eu, de uma determinação climática, geográfica, étnica — algo a ver com o homem cordial ou a formação do patrimonialismo brasileiro. Cada um escolha a sua variante determinista. Não descarto que alguém culpe os mamelucos, os cafuzos, o consumo deficiente de vitaminas dos senhores de engenho... É verdade, gente: Dona Zelite comia mal no Brasil colonial. Virá daí algum déficit insanável? Não sei.
Mas o que sei? A gente pode determinar amanhã: ou se fazem as reformas tributária, previdenciária e política, ou jamais sairemos do buraco. Então tá. Você pode ler O Príncipe, de Maquiavel, e se convencer de que os atos da vontade estão submetidos a alguma condições objetivas, num equilíbrio delicado entre a Fortuna e a Virtude. E você pode resolver contrariar O Pequeno Príncipe — qualquer livro no país já faz diferença — e pedir ao povo que se lance ao mar para se salvar. Se ele não topar, é porque é irremediavelmente atrasado.
Certo. Também achei que fui alegórico demais. Sintetizo: não adianta estabelecer como pré-condições para um crescimento robusto o que se sabe, de antemão, que não será realizado.


Outra desculpa esfarrapada


editorial
O Estado de S. Paulo
28/2/2007

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva - não há como evitar a expressão - é dose. Ele não consegue formar o Gabinete do segundo mandato porque, logo depois da reeleição, prometeu um Ministério para a ex-prefeita Marta Suplicy, descobriu tardiamente que não tinha onde encaixá-la sem criar problemas para o seu governo, enquanto o PT encampava a sua indicação; porque não sabe como contemplar o PMDB dos senadores Renan Calheiros e José Sarney sem magoar o PMDB do deputado Michel Temer, enquanto espera que o partido o substitua no comando pelo seu preferido Nelson Jobim; porque precisa dar uma vaga ao PDT, o mais novo membro da ampla coalizão lulista de 11 legendas, mas o pedetista que tem em mente não é o pedetista que os pedetistas querem ver ministro; porque, se dependesse dele, não haveria reforma ministerial, mas isso é impensável para os sôfregos partidos da base expandida; porque lhe falta aptidão para negociar, mesmo a partir da mais privilegiada das posições políticas concebíveis no presidencialismo; porque lhe falta aquela liderança que não advém exclusivamente das ruas e das urnas e que, diferentemente do que possa imaginar, não é sinônimo de popularidade; porque, em suma, tem horror a tomar decisões quando as decisões têm custo diferente de zero.

Mas não é nem por tudo isso que o presidente é dose. O termo se aplica em razão do seu comportamento no mais arrastado processo do gênero de que se tem notícia na história republicana. E a tônica desse comportamento é o absoluto pouco-caso com a credulidade, o discernimento e a paciência da opinião pública. Lula diz hoje uma coisa, amanhã outra, trata de espalhar versões sobre o que pretende apenas para mandar desmenti-las na primeira oportunidade, alardeia que o governo funciona que é uma beleza, quando até o mais distraído dos contínuos da Esplanada sabe que a administração parou à espera do que trará o dia seguinte, ou a semana seguinte, ou o mês seguinte. E, de volta ao velho estilo, ele culpa os outros pelo nó que mantém atado, cultivando o pensamento mágico de que o tempo se incumbirá de desfazê-lo. No mensalão, a culpa foi dos traidores que Lula não se deu ao trabalho de identificar; no dossiê Vedoin, culpados foram os aloprados do comitê central de sua campanha; agora, as nomeações não se consumam porque esses políticos ficam entrando e saindo dos partidos, deixando-o sem saber, pobre dele, com quantas divisões ficará cada qual no Congresso e, portanto, que pedaço do butim cada qual fará por merecer.

Assim como quis acondicionar em algodão e celofane as evidências de caixa 2 no PT, falando em "recursos não contabilizados", agora, em vez do chulo troca-troca com que o público em geral se refere ao ir-e-vir dos deputados, Lula cunhou a elegante e eticamente neutra expressão "processo de alinhamento" partidário. Só quando terminar "esse movimento dentro dos partidos políticos", disse Lula no seu programa Café com o Presidente, terá "mais tranqüilidade para definir a montagem do governo". É dose dupla. Primeiro, porque o autodenominado paladino da moralização dos costumes políticos - mediante uma reforma que, entre outras novidades, coibiria a infidelidade partidária - trata dessa patologia do sistema como se fosse a coisa mais natural e menos reprovável do mundo. Segundo e pior ainda, porque sugere que não tem nada com isso. O Globo de ontem informava, porém, que "o Planalto tem estimulado o crescimento de algumas legendas aliadas, principalmente o PR (ex-PL)". O novo partido do vice José Alencar elegeu 25 deputados. Está com 33. Pretende chegar a 45. "O governo pensa também em vitaminar o PAN, que só elegeu 1 deputado, já está com 5 e pode ganhar o reforço do ministro Walfrido Mares Guia."

Descontados o eufemismo e o cinismo, o "processo de alinhamento" é uma desculpa esfarrapada para a incapacidade presidencial de escolher o seu time. Em comparação com a esbórnia no seu primeiro governo, o processo é café pequeno. Até a denúncia do mensalão, mais de 100 dos 513 deputados foram incentivados a mudar de legenda. Agora, as trocas são da ordem de 20. Muito pouco para travar a definição de um Gabinete. Mas desde quando os fatos impediram Lula de dizer o que quer?

Loterias ou 'lavanderias'?


editorial
O Estado de S. Paulo
28/2/2007

A denúncia de graves irregularidades que estariam sendo praticadas nas loterias federais, feita pelo senador Álvaro Dias (PSDB-PR), é muito mais importante do que parece à primeira vista. Expondo um milionário esquema de lavagem de dinheiro por meio do resgate de prêmios de várias modalidades de jogo sob responsabilidade da Caixa Econômica Federal, ela revela como é vulnerável o sistema interno de controle da instituição.

O parlamentar paranaense descobriu o esquema ao analisar 29 relatórios enviados pela Caixa ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Ao todo, 75 pessoas estariam envolvidas na fraude, inclusive alguns funcionários da própria Caixa. Segundo Dias, entre 2002 e 2006 teriam sido lavados R$ 32 milhões provenientes de atividades criminosas. Num dos casos investigados, um "ganhador" teria resgatado 17 prêmios num único dia, no valor de R$ 4 milhões, em vários tipos de aposta. Em outro caso, um "ganhador" descontou 107 bilhetes no mesmo dia e na mesma agência, no valor de R$ 310 mil. O caso mais escandaloso envolve três irmãos que "ganharam" 525 vezes e receberam R$ 3,8 milhões.

Entre os ganhadores que aparecem nos relatórios do Coaf, um dos mais conhecidos é o doleiro Antonio Claramunt, o "Toninho da Barcelona", que foi preso em 2004 pela Polícia Federal durante a operação Farol da Colina, por estar envolvido no esquema de remessa ilegal de dinheiro ao exterior por meio da agência do Banestado, e foi condenado a nove anos de prisão. Em 2002, ele recebeu da Caixa R$ 218 mil num mesmo dia, referentes a 38 prêmios, em 5 tipos distintos de sorteio.

Estatisticamente, é impossível que esses apostadores tenham tido tanta sorte. Levantamento divulgado há dois anos revela que um grupo de apenas 200 pessoas acertaram 9.095 vezes nos jogos da Caixa, entre março de 1996 e fevereiro de 2002, enquanto 98,6% das 168.172 pessoas premiadas alguma vez no mesmo período somente acertaram até quatro vezes. Esses números falam por si, evidenciando a existência do esquema denunciado por Álvaro Dias. Na realidade, como diz ele, a fraude praticada segue um roteiro muito bem definido.

Os interessados em dar aparência legal a dinheiro obtido por meios ilícitos são avisados por funcionários da Caixa sobre a presença de vencedores nas agências da instituição. O saque do prêmio é efetuado pelos próprios ganhadores. No entanto, graças à interferência de bancários inescrupulosos, a operação é contabilizada em nome dos beneficiários do esquema e não em nome dos verdadeiros ganhadores.

Custa crer que a área de auditoria da Caixa jamais tenha desconfiado desse audacioso esquema. Também não dá para entender como, embora as instituições financeiras disponham de sofisticados bancos de dados com informações sobre seus clientes, inclusive sobre suas respectivas folhas corridas na polícia e prontuários nos tribunais, a Caixa não descobriu que, entre os vencedores das loterias, alguns estejam sendo processados por estelionato, falsidade ideológica, lesão corporal, homicídio, sonegação fiscal, contrabando, porte ilegal de armas, evasão de divisas e crimes contra o sistema financeiro.

Em nota oficial distribuída após a denúncia do senador Álvaro Dias, a Caixa se limitou a afirmar que os "indícios" de irregularidades foram comunicados ao Coaf, que a maioria dos pagamentos ocorreu até o ano 2000, que alguns agentes lotéricos foram descredenciados e que a entidade não tem "competência para investigar crimes". O que ela não diz, contudo, é se tomou providências concretas para acabar de uma vez por todas com o esquema em suas agências, demitindo os funcionários envolvidos e moralizando a área de loterias.

Para tentar pôr fim a esse esquema de lavagem, o senador Álvaro Dias apresentou um projeto de lei estabelecendo critérios rigorosos para o pagamento dos prêmios. A iniciativa é oportuna. Mas isso não exime a Caixa da responsabilidade de esclarecer melhor os fatos e a diretoria de fiscalização do Banco Central de explicar que medidas já tomou ou pretende tomar para resolver esse problema.

Impróprio para menores- Ruy Castro


Artigo
Folha de S. Paulo
28/2/2007

Uma vez tiete, sempre tiete. Sou leitor de Carlos Heitor Cony há tanto tempo que às vezes me pergunto se não saltei direto da cartilha para seus livros. Não foi assim, mas quase. Comecei a ler Cony em 1961, quando ele surgiu no "Correio da Manhã", do Rio, escrevendo dia sim, dia não, uma crônica genericamente intitulada "Da Arte de Falar Mal". Era um permanente e implacável exercício de niilismo, tão hilariante quanto sedutor e, quem sabe, impróprio para menores -como eu, que tinha 13 anos e me identifiquei para sempre com esse traço de Cony.
Não muito depois, também fui parar na imprensa e fiquei seu amigo. Calhou que, em 1969, ele fosse meu editor numa revista e, em 1970, eu fosse editor dele, em outra. Mas o maior período em que trabalhamos juntos foi na redação de "Manchete", em mesas contíguas, entre 1970 e 1973. Depois, cada qual seguiu seu caminho, mas nunca sumimos um do outro por muito tempo, ligados por várias fixações em comum.
Uma delas é a de que somos os únicos membros do informal fã-clube carioca de Nacio Herb Brown, o compositor de "Cantando na Chuva". Outra é a admiração por Ary Barroso, Otto Maria Carpeaux, Mario Filho e pelas coxas de Silvana Mangano em "Arroz Amargo". E ainda outra é a facilidade para rir de nós mesmos, principalmente quando trocamos confidências, verídicas ou imaginárias. Mas chegará o dia em que, em vez de confidências, trocaremos sintomas.
Até hoje guardo os "Da Arte de Falar Mal" originais, tirados do "Correio". São recortes de mais de 40 anos e, incrível, sem aquelas manchas amarelas. A prosa de Cony também continua enxuta, indistinguível do material que ele produz há anos para a Folha. Revezar com ele neste espaço não será apenas uma honra, mas uma parada.

As mágoas uruguaias persistem



editorial
O Estado de S. Paulo
28/2/2007

O clima de cordialidade que marcou o encontro dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Tabaré Vázquez não é um indicador de que as graves contrariedades do governo uruguaio em suas relações com o Mercosul tenham sido superadas. As breves seis horas - aí incluídos um demorado almoço e as amenidades de praxe - que o presidente Lula passou no Uruguai não seriam suficientes para que os dois chefes de governo aprofundassem qualquer discussão sobre os pontos que constituem o contencioso uruguaio. Antes da reunião, o governo e os setores produtivos daquele país sentiam-se tolhidos pelas regras da união aduaneira, que não permite negociar acordos comerciais sem participação de todos os integrantes do bloco, e prejudicados pelas "assimetrias", ou seja, pelos crescentes déficits comerciais que o Uruguai se sente condenado a sofrer por conta da estrutura do Mercosul. E, quando Lula voltou para Brasília, esse sentimento de profunda frustração não havia desaparecido.

Na nota conjunta sobre a reunião, os dois presidentes reafirmaram "o compromisso com o aprofundamento da integração produtiva dentro do Mercosul e com a aplicação de mecanismos eficientes para superar as assimetrias". Ou seja, os dois países comprometeram-se com o que já se haviam comprometido desde a criação do Mercosul. Esse "compromisso" não tem efeito prático e muito menos significa uma mudança na política uruguaia, que é a de procurar acordos comerciais mais lucrativos, fora do Mercosul.

Mas a visita do presidente Lula está sendo apresentada, pelo governo, como um sucesso. Ele teria convencido o presidente Tabaré Vázquez a não levar adiante o projeto de negociar um tratado de livre-comércio com os Estados Unidos, a 10 dias da chegada do presidente George W. Bush a Montevidéu. Como se sabe, se tal tratado chegasse a ser feito e ratificado, o Uruguai não poderia continuar a fazer parte do Mercosul, do qual é sócio fundador, por absoluta incompatibilidade com as regras da união aduaneira.

O ministro da Economia do Uruguai, Danilo Astori, ferrenho defensor do acordo com os Estados Unidos, declarou ao final do encontro presidencial que seu país continuará perseguindo a possibilidade de um acordo bilateral com Washington, mas dentro das normas do Mercosul. Ou seja, enunciou um paradoxo.

Significaria isso que o Uruguai mudou de posição? Se algo não falta ao governo de Tabaré Vázquez é o sentido do interesse nacional e o senso de realidade. Por mais enfáticas que sejam as declarações do presidente Lula de solidariedade com o Uruguai, o presidente Vázquez sabe que o seu país não figura entre as prioridades da política externa brasileira. E o presidente Lula nunca escondeu que Montevidéu não está entre suas maiores preocupações. Até hoje os uruguaios, partidários do governo ou da oposição, não engoliram a olímpica recusa do governo brasileiro de mediar a questão das papeleras - o que foi visto como um apoio implícito à posição argentina. Também pegou muito mal a ausência de Lula na Cúpula Ibero-Americana de Montevidéu, em novembro, e pior ainda o cancelamento da visita oficial, em dezembro.

Além disso, os acordos e convênios assinados no encontro de anteontem jamais compensariam as oportunidades que o Uruguai teria com um relacionamento comercial privilegiado com os Estados Unidos. O ex-presidente Jorge Batlle, por exemplo, recordou que durante sua administração o governo brasileiro anunciou que o BNDES faria aportes importantes à economia uruguaia - como agora voltou a fazer - "e nunca se conseguiu absolutamente nada". O ex-presidente Luis Alberto Lacalle, por sua vez, declarou que o presidente brasileiro chegou a seu país "autoproclamando uma liderança que ninguém lhe concedeu". E acrescentou: "Que Lula venha falar que é preciso melhorar o comércio e os negócios com o Uruguai parece uma piada." E o ministro da Agropecuária, José Mujica, que integrou a delegação que se entendeu com a comitiva brasileira, fez um implacável resumo da ópera: "Lula não fez anúncios nem mudou sua posição, e o grande destinatário de seu discurso foi a sociedade brasileira."

Os uruguaios não se deixaram iludir pela retórica lulista. Se não vão insistir no tratado de livre-comércio com Washington é por uma simples e realista razão: já estão peremptos os poderes que o Congresso atribuiu ao presidente Bush para negociar acordos comerciais. Só por isso.

Ano do porco ou ano do cão? - Vinícius Torres Freire



Artigo
Folha de S. Paulo
28/2/2007

Ano do porco chinês começa com onda de pânico, que vai continuar se a economia real dos EUA entrar no ano do cão

ATIRAR PRIMEIRO e perguntar depois é uma regra de bolso dos investidores diante do pânico financeiro. Quando o mercado derrete, importa conter perdas e fugir do risco maior. Causas fundamentais e teorias ficam para depois. Quando o tsunami chinês surgiu, na Bolsa de Xangai, fugiu-se da praia para a montanha. Só. Não há explicação econômica para o espraiamento imediato do caos.
Mas o que detonou o pânico na China? Além do contágio chinês, há motivos que podem induzir investidores globais a adotar atitudes ainda mais defensivas e fugir do risco?
Aliás, lembre-se: fuga do risco significa também fuga do Brasil. Há motivos para novas quedas nos mercados? Em tese, sim. A Bolsa chinesa é instável, nova e está contaminada por especulação primitiva e negociatas. Os americanos, por sua vez, temem calotes no mercado imobiliário, o PIB em baixa e a inflação alta. Enfim, há indícios de valorização exagerada de ativos financeiros no mundo todo.
Mas, se a crise nos mercados continuar, será por causa do efeito da bolha chinesa sobre os EUA? Ou devido à multiplicação de sinais de estresse nas finanças e na economia real dos EUA, com seus efeitos inevitáveis sobre a China e o planeta?

China x EUA
Os ocidentais menos ignorantes sobre a China diziam ontem que o pânico nas Bolsas chinesas começou com boatos. O governo estaria para adotar medidas contra a hiperatividade financeira no país. Haveria imposto de 20% sobre ganhos de capital. Limites para investir em ações com dinheiro emprestado. Juros mais altos. Para uma Bolsa que cresceu 130% em 2006, com uma clientela de varejo e inexperiente, o rumor indicou que viria um breque feio na especulação e nos preços das ações.
Nos EUA, persiste a ansiedade sobre o risco de ruína no mercado imobiliário. Muita gente com histórico de crédito "abaixo do ideal" foi incentivada a tomar empréstimos imobiliários, antes baratos. Está dando calotes. E daí?
Os empréstimos imobiliários são agregados e vendidos como títulos de investimento. Pode-se investir em diversos tipos de títulos lastreados em pagamentos de prestações imobiliárias. As empresas de financiamento imobiliário vendem os empréstimos para bancos, que os revendem na forma de títulos para investidores, fundos etc.
Quando o nível de calote precoce sobe, os bancos devolvem empréstimos ruins para as empresas de financiamento imobiliário, que começam a quebrar. Mas os bancos também perdem, pois emprestaram dinheiro para essas mesmas imobiliárias quebradas. Quem investiu em títulos imobiliários perde. Quem comprou ações de empresas do ramo perde. Por fim, fundos montaram operações exóticas com tais títulos imobiliários e ninguém sabe o tamanho do rolo.
Sinais amarelos acenderam. O custo do seguro para investimentos de risco sobe. Os juros futuros nos EUA estão em um nível que costuma indicar risco de recessão. A inflação não cede. Há incerteza sobre a desaceleração da economia. Ontem, divulgou-se que as encomendas de bens duráveis para a indústria caíram o dobro do previsto. Que o preço das casas caiu em 2006, o que derruba ainda mais o mercado imobiliário e ajuda a estressar o sistema de crédito. E não se sabe se as grandes empresas vão continuar com os lucros crescentes dos últimos três anos -se os lucros caem, cai o interesse pela Bolsa.
Se os EUA crescerem menos, haverá problemas para a China, que exporta muito para os americanos. Se os investidores acharem que há crise real nos EUA, a China terá sido só um bom pretexto para o início da fuga de ativos de risco.
O que vai ser do mercado hoje? A resposta mais comum e sábia, apesar de aparentemente idiota, é que a situação só ficará ruim se piorar.

Míriam Leitão - Um susto



PANORAMA ECONÔMICO
O Globo
28/2/2007

O que aconteceu ontem nas bolsas do mundo todo assustou. No Brasil, a Bovespa não caía assim desde o 11 de Setembro; a bolsa chinesa teve sua pior queda em 10 anos. Os mercados foram caindo ao longo do dia como peças de dominó. Mas foi um susto. O cenário, apesar de mais volátil, continua positivo, de alta liquidez. E os fundamentos brasileiros são bons. Nos primeiros dias de 2007, os cálculos eram que, na virada do ano, o Brasil teria US$100 bilhões de reservas cambiais. O número vai ser atingido esta semana.

Os últimos anos, apesar de alguns momentos ruins, foram de otimismo nos mercados internacionais. No Brasil, de 2003 para cá, a bolsa subiu 281%. A maré de boas notícias e liquidez aumentou mais nos últimos meses e acabou provocando uma forte valorização dos ativos nas bolsas de todo o mundo; sobretudo nos mercados emergentes. Esse cenário positivo ajudou o Brasil a aumentar ainda mais suas reservas. Com o otimismo lá no alto, não foi por acaso que o dólar no país, nos últimos meses, caiu mais.

O que aconteceu ontem também não foi por acaso. O próprio mercado espera que, em épocas como esta, de excesso de otimismo, haja movimentos de realização de lucros. Desde maio do ano passado, que eles não aconteciam.

- A melhora está ocorrendo em todos os emergentes, mas é preciso tomar cuidado com o excesso de otimismo. Sempre há um período de valorização dos ativos, depois uma correção, e há momentos em que o humor muda. Quando há otimismo, como nos últimos meses, ninguém costuma ver os problemas, mas eles acabam aparecendo depois - afirmou Roberto Padovani, do WestLB.

Existe uma concordância no mercado de que os problemas nos ativos não vieram para ficar; são apenas ajustes. Mas Padovani acredita que 2007 deverá ser um período de economia bem mais volátil, diferentemente do ano passado.

- A economia mundial vai, de um modo geral, muito bem. Ao longo de fevereiro, houve uma mudança de humor para melhor; na verdade, uma certa euforia nos mercados internacionais, com muita liquidez. É um tempo de enorme exuberância nos mercados e, quando é assim, os ajustes podem acabar sendo fortes, como aconteceu nesta terça-feira. O que houve foi resultado do excesso de alavancagem - disse ele.

Mas, neste episódio, há um fator que precisa começar a ser olhado com mais atenção. Até agora, pouca gente conseguiu entender bem, com clareza, o que se passa na China. No mercado, não se tem informações muito nítidas de como funciona a economia deles, altamente controlada. A queda brusca de ontem, que pode continuar esta semana - ainda que mais fraca -, acendeu a luz amarela para aspectos ainda pouco transparentes da economia chinesa, isso sem falar nos problemas políticos.

Um artigo no "Washington Post" chamou a atenção para o fato de que o país tem muitos problemas que ainda não foram sanados, mesmo com o enorme crescimento chinês, ao redor de 10%. Mais que provável é recomendável que o mercado passe a olhar com mais desconfiança para o que se passa, de verdade, na China.

Porém, apesar de tudo isso, as expectativas para o Brasil, que hoje tem fundamentos bem melhores, são boas.

- Os fundos estrangeiros não têm questionado os fundamentos brasileiros; não têm intenção de diminuir o investimento no país - conta Nuno Câmara, do Dresdner, em Nova York.

- A volatilidade aumentou, mas não dá para descartar que haja melhoras, em breve. Os fundamentos do país são vistos como um ponto positivo - diz Alexandre Maia, da Gap Asset.

As reservas são uma boa demonstração de que o cenário é bom. Elas vão muito bem. Em fevereiro, até o fechamento da segunda-feira, o Banco Central havia comprado mais US$7 bilhões. O país está com excelentes indicadores econômicos nessa área, uma taxa de juros alta demais, e com perspectiva de queda.

- Só a expectativa de que os juros vão cair já atrai mais recursos, porque o investidor pensa assim: "tenho de entrar agora porque, senão, terei prejuízo" - comenta Padovani.

O economista José Roberto Mendonça de Barros, da MB Associados, argumenta que é preciso aproveitar melhor quando o vento estiver soprando a favor, não apenas acumulando reservas, mas fazendo outras mudanças que fortaleçam a economia. Isso protege o país caso haja risco de haver uma crise de fato. Apesar da alta do risco-país e do dólar ontem, as perspectivas continuam boas.

- O risco vai continuar caindo e o dólar se manterá baixo, o que ajuda a deixar a inflação baixa. As reservas chegarão a US$100 bilhões esta semana e vão a US$120 bilhões este ano. Isso vai ajudar a derrubar a taxa de juros mais rapidamente - afirma José Roberto Mendonça de Barros.

O que houve nesta terça-feira foi um susto. As indicações positivas na economia mundial continuam existindo, mas este ano será de mais volatilidade, com outros solavancos como este de ontem.

Merval Pereira - O Enigma



O Globo
28/2/2007

Se a queda da bolsa de Shangai, levando de roldão as bolsas mundiais, não significar mesmo, como todos os especialistas estão dizendo, o início de uma crise financeira globalizada, uma nova crise asiática como a iniciada em outubro de 1997 - quando os chamados tigres asiáticos (primeiro os "tigrinhos" Tailândia, Malásia, Indonésia e Filipinas, logo em seguida os "tigres" Coréia do Sul e Hong Kong) sofreram freqüentes quedas nas suas Bolsas de Valores, crise financeira essa que atingiu especialmente o Brasil, com a Bolsa de Valores de São Paulo caindo 14,9% no dia 27 de outubro -, podemos continuar brincando de onde está Wally para montar o Ministério do segundo mandato do presidente Lula.

A parte mais interessante dessa heterodoxa montagem ministerial a que se dedica o presidente Lula é a tentativa de encaixar o sanitarista José Gomes Temporão no Ministério da Saúde. Se o presidente está tão impressionado com sua capacidade de gestão que insiste em tê-lo em sua equipe, por que não fecha questão e o coloca em sua cota pessoal, sem necessitar de apoio político?

Não há nenhuma razão para que o presidente não tenha em sua equipe uma pessoa que considere tão imprescindível. O deputado Henrique Eduardo Alves, que lidera o movimento dentro do PMDB contra a nomeação de Temporão, já demonstrou que não tem discernimento para impor suas vontades, nem para liderar movimentos políticos. Assim como acha normal pagar por reportagens a seu favor no seu próprio jornal, e ainda exibe os recibos, também acha normal tratar o Ministério da Saúde como simples barganha política.

O presidente já tomou posse há quase dois meses, já foi eleito há mais de quatro meses, e ninguém sabe quem fica ou quem entra neste segundo Ministério. Descobrir por que o presidente demora tanto a se decidir pode significar decifrar um enigma que ameaça nos devorar a todos nesses próximos quatro anos. Entre as diversas hipóteses, duas são as mais prováveis.

O presidente estaria empenhado em denunciar publicamente a maneira nada séria como os partidos políticos tratam as questões de Estado. De fato, Lula parece estar dedicado a desmoralizar os partidos políticos, expondo-os à execração pública pela maneira absolutamente inescrupulosa com que se jogam à disputa de cargos, sem projetos, sem ambições que não sejam as mais rasteiras e imediatistas, sem se darem ao respeito.

Enquanto isso, o presidente apareceria para o grande público como empenhado em fazer um Ministério "técnico", querendo nomear um grande gestor para a Saúde, tentando evitar que a ambição política do PT use o Ministério para fortalecer a candidatura de Marta Suplicy não para ser a boa ministra das Cidades ou da Educação, mas a presidente da República na sucessão de Lula.

Mas há uma segunda hipótese: o presidente simplesmente não sabe decidir. À medida que o tempo vai passando sem uma definição, Lula pode dar a impressão de fraqueza, de não saber o que realmente quer deste segundo mandato. A cada dia que muda de opinião, pode dar a sensação de estar tentando contornar problemas com os partidos, mas pode também deixar a impressão de que não consegue se impor aos aliados, sendo manipulado por eles.

Onde já se viu um partido político dizer que não abre mão de determinado cargo, como se tivesse direitos hereditários a ele? Se pelo menos houvesse um programa em processo de implantação desde o primeiro governo, seria o caso de o partido lamentar não poder prosseguir com o trabalho, e até mesmo pressionar com números e dados para mostrar que a mudança seria prejudicial ao país neste ou naquele setor.

Mas não se vê nada disso. Todos estão de olho nas grossas verbas previstas no PAC para saneamento e construção civil, não exatamente pelo bem que poderão causar ao desenvolvimento, mas pelos votos que poderão trazer a este ou aquele partido, tanto quanto na parceria com as empreiteiras das grandes obras, que financiam as campanhas políticas.

Mas será que temos mesmo tempo para perder nessa politicagem? Quem é mais confiável, o ex-presidente do Fed americano Alan Greenspan, que vê sinais de recessão na economia dos Estados Unidos, ou o nosso ministro da Fazenda, Guido Mantega, que garante que as turbulências são passageiras? Pode ser síndrome de presidente do Banco Central, mas o início de pânico deu fôlego a Henrique Meirelles, que aproveitou a crise na bolsa chinesa para advertir que toda cautela é pouca, mesmo quando parece inacabável o céu de brigadeiro da economia mundial.

Um país que, de potencial expoente da economia internacional, se transforma no lanterninha moral do crescimento econômico (ou alguém tem orgulho de termos crescido mais que o Haiti pelo segundo ano consecutivo, ou com a perspectiva de que este ano passaremos também o Paraguai?) precisaria pelo menos de mais pressa nas suas decisões para recuperar o tempo perdido, enquanto o período de vacas magras, inevitável, não chega. Se é que já não chegou.

A mulher do ministro da Cultura, Flora Gil, depois de ter seu carro blindado alvejado 16 vezes numa tentativa de assalto ano passado no Rio, disse que aquilo poderia ter acontecido em qualquer lugar do mundo.

A ministra Ellen Grace, presidente do Supremo Tribunal Federal, depois de assaltada na Linha Vermelha, no Rio de Janeiro, juntamente com o vice-presidente Gilmar Mendes, disse que assaltos acontecem.

A mulher do ministro da Fazenda, a psicanalista Eliane Mantega, depois de ter ficado seqüestrada com o marido e filhos por três horas, disse que os bandidos foram "supergentis". O ministro demorou 12 horas para comunicar o crime.

Que país é esse?

Élio Gaspari - O reflexo de Mantega demorou doze horas



O Globo
28/2/2007

Pode-se baixar até mesmo a maioridade penal dos fetos, mas é o caso de se pensar para que serve a maioridade dos adultos do andar de cima.

Às 23h30m da terça-feira de carnaval, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, estava numa chácara de Ibiúna, nas cercanias de São Paulo, quando a casa foi invadida por três bandidos. Dominaram os donos da casa, quatro casais convidados com seus filhos e os empregados da casa. Como não encontraram dinheiro, exigiram que o dono da casa, o empresário Victor Garcia Sandri, arrumasse cerca de R$20 mil. Sandri foi com um dos bandidos a São Paulo, conseguiu o ervanário e regressou a Ibiúna cinco horas depois. Os assaltantes foram embora.

O empresário disse que deu queixa à polícia numa delegacia que não sabe direito onde fica. Até a tarde de segunda-feira, não havia BO com seu nome em qualquer delegacia dos 645 municípios de São Paulo.

Mantega tem ao seu alcance a proteção da Polícia Federal. Preferiu ligar para o governador de São Paulo, prerrogativa dos detentores do babilaque "sabe-quem-está-telefonando?" Fez isso doze horas depois do episódio.

Sandri disse que não poderia reconhecer os bandidos porque eles estavam encapuzados. Mesmo se sabendo que aquela era a última noite de carnaval, é improvável que um sujeito encapuzado rodasse no banco do carona durante três horas por São Paulo sem que alguém achasse a cena esquisita.

Três dias depois do delito, a mulher do ministro, Eliane Berger Mantega, disse à repórter Soraya Aggege que não queria fazer "reconhecimento de ninguém". Mais: "Os caras foram supergentis, só queriam dinheiro."

É razoável que pessoas submetidas a situações violentas fiquem desorientadas. É compreensível que não procurem a polícia, por medo de uma vingança dos bandidos. Essa é a atitude de 25% das vítimas em São Paulo. (Tudo gente que não tem o telefone de José Serra.) Mantega é ministro da Fazenda e está obrigado a se comportar como autoridade pública. Deveria ter pedido ao anfitrião que notificasse imediatamente a polícia. Bastava discar 181. O ministro poderia ter chamado prontamente a central telefônica do Planalto, para que ela o ligasse com a Polícia Federal. Esses eram os caminhos institucionais, capazes de levar à rápida captura dos bandidos. Doze horas depois, a sorte se passa para o lado dos delinqüentes.

Coisas estranhas acontecem aos hierarcas em situações inesperadas. São tocados por algum demônio que converte o imprevisto em impotência. Nos anos 60, um cidadão entrou no gabinete do ministro da Educação, Pedro Aleixo, e disse que ia matá-lo. Conversaram e contou o motivo: o ministro trabalhava até tarde, retinha sua mulher no serviço e, por isso, ela o traía com outro. Pedro Aleixo explicou-lhe que não havia razão para tanto. Tendo-o convencido, levou-o à porta. Não chamou o guarda. O cidadão matou a mulher.

Um ano antes, o chefe da Casa Civil, Luís Viana Filho, ia em seu carro oficial pela Rua Santa Luzia. Atropelou um ancião. Formado um grupo de curiosos, o doutor disse ao motorista que cuidasse do caso, deu meia-volta e foi a pé para o Senadinho, a um quarteirão de distância. Horas depois, Luís Viana soube que o atropelado (morto) era o médico Maurício de Medeiros, seu colega na Academia Brasileira de Letras.

Clóvis Rossi - Paulinho e a China



Folha de S. Paulo
28/2/2007

Temo que Paulo Nogueira Batista Jr. esteja fazendo as malas na maior solidão para viajar para Washington, como representante do Brasil junto ao Fundo Monetário Internacional, o que, aliás, nem deve ser uma grande novidade para ele.
Afinal, anos atrás, ele fez parte de um pequeno grupo de economistas que era ouvido pelo Instituto da Cidadania, uma ONG criada para manter vivo no noticiário um certo Luiz Inácio Lula da Silva, entre uma derrota eleitoral e outra, até a vitória de 2002.
Por tudo o que o economista da FGV escreveu nesta Folha, durante os quatro anos do governo Lula, fica a nítida sensação de que tudo o que ele disse nos anos pré-vitória entrou por um ouvido e saiu pelo outro.
Não só ele, aliás. Havia ainda Aloizio Mercadante, Eduardo Suplicy, Guido Mantega e não muitos mais. Nenhum deles teve participação relevante na formulação e/ou na execução da política econômica no primeiro governo Lula. É verdade que Mantega foi ministro (do Planejamento) e depois presidente do BNDES, e Mercadante, líder no Senado.
Mas Henrique Meirelles, tucano de origem, apitava muito mais. Lembro-me bem de uma frase de Mercadante, sentado a meu lado em almoço no Itamaraty, oferecido por Lula, em 2004, ao então primeiro-ministro japonês, Junichiro Koizumi: "Sinto-me emparedado" (entre a lealdade ao governo de que era líder e as críticas que engolia à política econômica).
A política econômica de Lula-1 foi de Antonio Palocci. Ou, mais exatamente, de manual básico, com todas as vantagens e desvantagens do bê-a-bá. Seria tentador supor que o Lula-2, ao resgatar Mantega e Nogueira Batista, seja uma volta às origens. Mas a China influi mais na economia (do mundo e do Brasil, como ficou demonstrado ontem) do que o próprio presidente.

Celso Ming - Coceira na mão



O Estado de S. Paulo
28/2/2007

Os antigos desenvolveram sensibilidade especial para prever acontecimentos iminentes a partir de sensações produzidas ao longo do corpo. Quando, por exemplo, alguém sentia coceira nas costas (dorsus meus totus prurit, dizia um personagem de Plauto), uma surra devia estar a caminho. Para Teócrito, um tremor de supercílio (supercilii saltus) prenunciava a visão da mulher amada.

Algumas dessas receitas premonitórias chegaram ao Brasil e fazem parte do patrimônio cultural do povo. Assim, orelha quente é indicação de que alguém está falando mal do dono da orelha. Coceira na palma da mão significa dinheiro chegando ou, conforme o caso, indo embora.

Depois que o Índice da Bolsa de Xangai disparou incríveis 130% no ano passado, uma renitente coceira tomou conta da palma das mãos dos analistas internacionais. Há dois meses, eles lançam perguntas sobre quando, afinal, aconteceria o estouro da bolha ou o início do desinchaço.

E o ajuste veio ontem, sem prévio aviso, a não ser a tal coceira geral identificada no desassossego dos analistas. Não dá para saber se eles pressentiram a derrubada ou se ajudaram a criá-la. O que deflagrou o mergulho do Índice da Bolsa de Xangai, de nada menos que 8,8%, foi a disseminação do boato de que o governo da China tomaria providências para conter a especulação no sistema financeiro. Coincidência ou não, isso aconteceu no dia seguinte ao discurso do ex-presidente do Fed, o banco central americano, Alan Greenspan, que alertou para uma recessão a caminho.

Ninguém foi capaz de confirmar o conteúdo do zunzum chinês. De tempos em tempos, o governo de Pequim informa que estão a caminho providências destinadas a moralizar o setor ou a reduzir investimentos excessivos e coisas assim, sem que nada de relevante se passe.

A magnitude do tombo e a rapidez com que aconteceu (num só pregão) causaram alarme nas capitais financeiras do mundo. Os índices das bolsas desabaram seguindo o fuso horário, começando na Ásia e terminando na América do Norte. O Índice Dow Jones (Nova York) fechou com uma baixa de 3,3%, enormidade para o padrão americano. E a do Brasil (Índice Bovespa) cedeu 6,6%. O prêmio de risco dos países emergentes saltou 18 pontos e o do Brasil, 19. De cambulhada caíram os preços das commodities, especialmente dos metais.

Movimentos com uma forte carga de irracionalidade, como este, são de desfecho imprevisível. Podem durar meses; podem ir embora como chuva de verão. Como a isso deve ser acrescentada a falta de informações sobre o que o que o governo de Pequim está preparando, se é que está preparando, fica tudo ainda mais imprevisível.

Não há nada de errado na economia real do mundo ou na da China. Se em vez de crescer 11%, a economia chinesa ficasse com 7% ou 8% em 2007, continuaria sendo um sorvedouro de matérias-primas, alimentos e energia, que nem de longe seria capaz de colocar em risco o avanço global.

Só nos próximos dias é que se saberá se este ajuste é dinheiro chegando ou se é indo embora, como ontem a tantos pareceu.

Dora Kramer - Um jeito de não querer



O Estado de S. Paulo
28/2/2007

O presidente da República tem uma maneira direta de querer, mas tem um jeito totalmente transverso de não querer. Dependesse só da vontade dele, não houvesse nenhuma outra circunstância em jogo, Luiz Inácio da Silva iria navegando a bordo do PAC, dos discursos, de uma carta de intenções aqui, outra ali, de uma laboração internacional acolá e estava assim muito bem resolvido o problema sob sua ótica do que seja governar, sem precisar mexer com essa história de reforma ministerial.

Premido pelas promessas, porém, tangido pela expectativa dos que o apoiaram e não pensam como ele, que a reeleição se deveu única e exclusivamente à performance do candidato, precisa fazer o que não quer, embatucado exatamente nos transtornos dos dois partidos cujos apoios seriam a solução para todos os seus problemas de sustentação parlamentar.

Abstraindo o desejo do presidente, reside no PT e no PMDB a razão do atraso da reforma. São 'só' duas questões, mas, por essenciais, paralisam todo o resto à espera de Lula - autonomeado articulador político do governo - se decidir a chamar cada qual separadamente para dizer como é que a banda deve tocar e pôr as coisas (no caso, os ministros) em seus devidos lugares.

O presidente não se abre totalmente, mas deixa sentimentos e impressões transparecerem nas conversas preliminares da reforma com os partidos.

Lula quer o PMDB todo com ele, mas nutre um bem-querer mais acentuado à ala que esteve governista desde antes da primeira hora. Deve obrigações político-eleitorais àquela que levou quatro anos para aderir, faz de tudo para disfarçar, mas não digere com conforto as companhias. Longe, dele, porém, a idéia de deixar patente a preferência.

Com isso, vai dando tempo ao tempo, na esperança de que as coisas se resolvam por si, que os preferidos prevaleçam sobre os menos queridos e a sorte lhe seja madrinha, produzindo algum acontecimento gerador da solução por conta da lei da gravidade.

No PT, o nó leva o nome de Marta e sobrenome Suplicy.

Na reunião que teve com o PSB logo depois do carnaval, e que acabou rendendo polêmica e desmentidos, o presidente Lula tomou a iniciativa de pôr na roda o nome da ex-prefeita, falando das dificuldades para 'encaixá-la' no ministério sem que tivesse sido perguntado a respeito.

Os presentes estranharam, mas a interpretação corrente entre os participantes foi a de que Lula tocou no assunto sabendo que os comentários iriam dali direto para os jornais. Só erraram no tempo, porque os relatos não esperaram o dia seguinte; foram na mesma hora para a internet.

Sobre o que se divulgou daquele encontro de quase três horas de duração, nada estava sob embargo.

Lula não pediu reserva para as considerações feitas sobre Marta e deixou consignado nos termos em que expôs sua contrariedade - amenizados pelos interlocutores que reproduziram a conversa à imprensa - que acha a ex-prefeita um foco potencial de problemas. Maior dentro do que fora do ministério.

Marta Suplicy seria, na avaliação de quem ouviu, um alvo vistoso para a oposição. Antes, o presidente havia tentado resolver a questão impondo a preliminar da impossibilidade de seus ministros disputarem eleições em 2008. Era um jeito - ao seu modo tortuoso - de contornar o obstáculo, mas Marta aceitou a condição e devolveu a bola a Lula.

Nenhum sigilo foi solicitado também a respeito da intenção de postergar a reforma para depois da escolha do novo presidente do PMDB. Lula autorizou os interlocutores a dizerem que as mudanças na equipe esperariam mais um pouco. Mais especificamente até ele 'sentir firmeza' no PMDB.

E por 'firmeza' entenda-se a troca de presidente do partido, de Michel Temer por Nelson Jobim. E por que o presidente não diz isso com todas as letras às alas em conflito?

Porque acha que, se não assumir posição, não desagrada a ninguém. Como fez na disputa pela presidência da Câmara.

Noves fora

Uma pesquisa de opinião em poder do Palácio do Planalto aponta interesse zero da maioria dos consultados em relação ao assunto.

Na segunda-feira, em seu programa de rádio, o presidente da República informou que é nenhum o prejuízo do governo sem a reforma. 'Pelo contrário', disse.

Quer dizer, aflitos mesmo, só os partidos integrantes da coalizão programática, que não vêem a hora de contribuir com suas idéias e projetos para o bem de todos e a felicidade geral da Nação.

O exemplo

Difícil saber o que é pior: o ministro da Fazenda, Guido Mantega, desconhecer o dever de comunicar um crime à polícia ou fazê-lo 12 horas depois diretamente ao governador do Estado onde foi cometido o delito.

Conferiu dianteira aos bandidos e se pôs acima da coletividade que presta queixa nas delegacias e não tem como resolver sua descrença na ação da polícia recorrendo a autoridades acessíveis por obra do exercício circunstancial de um alto cargo público.

terça-feira, fevereiro 27, 2007

Dos venturosos canaviais por Demóstenes Torres

Depois do futebol, das mulatas seminuas e das chacinas gerais, o Brasil está sendo conhecido no mundo pela capacidade de produzir combustíveis renováveis. É notável o interesse da mídia européia e norte-americana pela iniciativa, especialmente em razão do forte apelo ambiental nestes tempos de torrefação climática. De fato, demos um grande salto desde os anos 1960, quando alternativas energéticas em relação ao petróleo começaram a ser projetadas e dos anos 1980, quando o plano saiu do papel com o pro-álcool. O Brasil se tornou vanguardista no setor de biocombustíveis, está pronto para se firmar neste novo mercado mundial, mas além da fotossíntese, da abundância de água e do solo generoso precisa de pragmatismo para não se tornar, de novo, uma monocultura de resultados.

Ainda que o presidente George W. Bush tenha entrado na fase de "pato manco", a visita ao Brasil pode se converter em uma guinada nas relações entre os dois países. A melhor idéia me parece ser a de trocar o viés ameríndio do diálogo sul-sul pela realização de bons negócios. O que se recuou nas relações bilaterais com a rejeição de chofre da Alca pode ser um terreno recuperado com o mercado de etanol e do biodiesel. É uma oportunidade de ouro, no entanto não me parece vantajoso a longo prazo se confirmar as palavras do brasilianista da Universidade de Columbia, Tom Trebat, segundo as quais o país poderá se tornar a Arábia Saudita do etanol.

O Brasil precisa obter maiores vantagens da sua posição privilegiada de líder na produção de biocombustíveis quando for assinar um tratado neste sentido com os EUA. A idéia é ir além de mero fornecedor de uma commodity e receber compensações financeiras pela capacidade tecnológica adquirida. Por mais que o presidente Lula queira atribuir a si mesmo a paternidade do programa de biocombustíveis, a iniciativa demandou quatro décadas de esforço e chegou a hora da colheita. Não há queridismos quando se fala de negócios. Os EUA não agem sob emoção ao defender suas patentes de medicamentos para soropositivos ou impor regras draconianas para utilizar a base de Alcântara.

Não vejo sinal positivo nesta imagem da nova Arábia Saudita. O Brasil não pode se reduzir ao papel de plantation da aldeia global. Já fizemos isso e deu no que deu com os ciclos da cana de açúcar, do café e da borracha. Veja que a vantagem tecnológica de hoje pode ser reduzida a nada em menos de uma década. No começo do século 17, o Brasil era vanguardista na produção de açúcar, então uma especiaria na Europa, até o holandês desenvolver o produto nas Antilhas. Depois, temos de pôr na balança o impacto que a expansão dos canaviais irá causar na produção de alimentos. O Brasil ainda não teve uma explosão social porque a comida ainda é muito barata. Fazer o etanol ao custo do desabastecimento ou do aumento da carestia é algo irresponsável.

Pode parecer lindo o mar de canavial ou de mamona a compor a paisagem de uma terra em que se plantando dá, como mencionaria um Policarpo Quaresma, mas não é isso que interessa. Se eles querem novas bases de relação comercial a partir do programa de biocombustíveis que cedam na questão tarifária, que apresentem um programa consistente de investimento em infra-estrutura no ciclo de produção do etanol, que façam inversões decisivas no setor de pesquisa e desenvolvimento e que assumam os custos de compensação ambiental pelos impactos a serem causados pelo programa. Só assim vamos saber se os EUA querem mesmo um parceiro confiável e capaz, como mencionou Mr. Trebat, ou apenas nos transformar em um imenso e desalmado canavial.

Ex-embaixador fala no Senado sobre críticas ao Itamaraty

No dia em que seu sucessor entrega credenciais, Abdenur explicará antiamericanismo que atribui ao governo Lula

Denise Chrispim Marin

As relações Brasil-Estados Unidos no governo Lula vão exibir na manhã de hoje um contraste curioso. Em Washington, o diplomata Antônio Patriota entregará suas credenciais de embaixador do Brasil nos EUA ao presidente George W. Bush. Em Brasília, os membros da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado pretendem registrar as críticas ao 'antiamericanismo e à orientação ideológica' do Itamaraty feitas pelo embaixador Roberto Abdenur, antecessor de Patriota e ex-aliado do chanceler Celso Amorim.

Esses movimentos contrários se darão a apenas dez dias do encontro de Bush com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em São Paulo, onde ambos assinarão acordos de cooperação na área de biocombustíveis que darão base a uma parceria estratégica no setor. A expectativa do governo é que essa iniciativa permita aprofundar e diversificar as relações bilaterais, sem ferir a prioridade do governo Lula à parceria com os vizinhos sul-americanos e demais países em desenvolvimento, a chamada Cooperação Sul-Sul.

No início de fevereiro, logo depois de ter deixado a embaixada do Brasil em Washington, Abdenur atacou justamente essa baliza. Afirmou à revista Veja que a definição da Cooperação Sul-Sul como o principal eixo da política externa do governo Lula 'revela um antiamericanismo atrasado' e acusou o Itamaraty de adotar um 'processo de doutrinação' dos diplomatas. Para ele, o elemento ideológico dominou a gestão Lula, na área externa. Próximo durante décadas do ministro Amorim, de quem foi secretário-geral em 1994, Abdenur chegou a afirmar na entrevista que o chanceler já não é mais seu amigo. O conteúdo de suas críticas e sua posição de veterano da diplomacia brasileira levaram os senadores tucanos Eduardo Azeredo (MG) e Flexa Ribeiro (PA) a convocar Abdenur para a audiência pública na comissão.

Aos 52 anos, Patriota comandará uma representação do Brasil no exterior pela primeira vez e justamente pelo posto mais importante. Promovido a embaixador em 2003, o diplomata segue desde 1995 os passos de Amorim, de quem tornou-se 'fidelíssimo escudeiro'. Ambos atuaram juntos nas missões do Brasil em Nova York (na Organização das Nações Unidas) e em Genebra.

Rubens Barbosa Visão de longo prazo



artigo -
O Estado de S. Paulo
27/2/2007

A política externa brasileira passou a fazer parte dos assuntos que merecem a atenção da opinião pública nacional. O cenário internacional no qual nossa política externa tem de ser executada, porém, é pouco analisado. A compreensão do que ocorre hoje e o que deverá acontecer nos próximos 10 ou 20 anos é essencial para julgar se a política hoje praticada pelo governo brasileiro está adequada aos tempos que correm.

O mundo surgido em 1991 com a queda do Muro de Berlin e o término da guerra fria não é mais reconhecível. A nova ordem internacional terminou com a bipolaridade e deixou os EUA como a única superpotência. Este mundo unipolar, afirmado na primeira Guerra do Golfo e com a invasão do Iraque depois dos ataques terroristas de 11 de setembro, está sendo superado. Com o desgaste e a perda de poder real e influência dos EUA, uma nova era - de maior incerteza para toda a comunidade internacional - começa a ganhar contornos mais definidos. Trata-se de um novo momento histórico em que nem o incontrastável poderio militar norte-americano, nem as velhas instituições multilaterais continuarão a prevalecer nos moldes até agora vigentes.

Estamos entrando num período “não-polar”, ou de multipolaridade política e econômica, com a emergência de novos centros de poder como contraponto a essa única superpotência. Para tentar resolver os conflitos, sejam eles políticos ou econômico-comerciais, pela negociação ou pela força, coalizões específicas de geometria variável se formam ao redor desses pólos: EUA, Europa (em declínio) e China. Rússia, Japão e Índia, por diferentes razões, não parecem fadados a alcançar o status de superpotências com capacidade de emular Washington e Beijing. Os países produtores de energia e as redes formadas pelas ONGs são partes da nova equação de poder.

A crescente difusão de poder torna o novo cenário internacional propício à proliferação de soluções que só podem ser alcançadas se negociadas. Apesar dessa tendência à multipolaridade, o multilateralismo - a aplicação de tratados e a utilização de instituições, como a ONU, para alcançar resultados concretos - está desgastado e cada vez mais difícil de ser usado para obter a redução dos riscos de conflito nuclear, das ameaças do terrorismo, dos choques étnicos, dos desastres ambientais, do combate à pobreza e da promoção de maior justiça social.

O lado positivo do momento atual é o forte crescimento da economia global e suas conseqüências positivas para os países que estão sabendo entender a globalização e aproveitar uma fase que já dura mais de 15 anos. Os últimos 5 anos só encontram paralelo em termos de prosperidade da economia mundial no inicio da década de 1970. Nesse quadro de crescente dificuldade para “administrar” o mundo, que fatores que poderão influenciar o cenário internacional nas próximas duas décadas? Analistas coincidem em que a evolução das relações internacionais vai depender, em larga medida, do poder da China e como ele será usado, do islamismo radical e como ele se desenvolverá, do poder dos EUA e como ele será usado, das conseqüências políticas e sociais das grandes transformações que começam a ocorrer em razão das mudanças de clima e dos problemas demográficos.

Em relação à China, continuará ela a ter uma evolução interna pacífica? O crescente poderio chinês colocará o país em conflito com os EUA e o Japão? Como ficará a ameaça de uso da força para impedir a independência de Taiwan? O Partido Comunista e os militares continuarão a prevalecer? No tocante ao islamismo, como ficará o relacionamento com o Ocidente? Como o eventual controle de armas nucleares por países de maioria islâmica pode afetar o equilíbrio global?

Os EUA terão de lidar com o mundo como ele é, e não como Washington gostaria que fosse. As questões do Iraque, do Irã e de Israel e Palestina estão fazendo a política externa norte-americana começar a se ajustar às crescentes complexidades do novo cenário internacional.

Qual o impacto que as transformações de clima ou doenças pandêmicas poderão acarretar, afetando, sobretudo, os países mais pobres?

Se esses elementos convergirem positivamente, nas próximas décadas, o mundo será provavelmente o resultado de uma combinação da globalização com uma forte presença asiática e uma continuada influência militar e estratégica norte-americana.

A realidade, contudo, nem sempre se forma como nós queremos. Acontecimentos não previstos poderão alterar essa situação, deixando saudades de uma época em que as soluções eram menos complexas, em especial para as grandes potências.

As tendências futuras do cenário internacional poderão alterar-se por fatos novos, modificando as relações entre os principais centros de poder. Quais as conseqüências, por exemplo, de uma eventual instabilidade política na China, acarretando um prolongado período de baixo crescimento, violência e uma política externa mais agressiva; de conflitos ou revoluções na região do Golfo Pérsico que dificultarão o acesso à região que concentra dois terços das reservas de petróleo; de epidemia mundial que produza grande mortandade, problemas econômicos e fechamento de fronteiras; de atos de terrorismo com armas de destruição em massa que poderiam levar a milhões de mortes e a restrições à liberdades internamente; de mudanças de clima que possam ocorrer mais rapidamente que o esperado ou de um evento como o rápido derretimento da calota de gelo na Antártida?

Como se vê, a perspectiva de médio prazo para os pólos de poder e para os países de regiões periféricas, como a América do Sul, é mais de indagações do que respostas. É nesse cenário que o Brasil se movimenta e que está a exigir uma clara definição de objetivos de médio e longo prazos. O mundo não vai esperar pelo Brasil. Ninguém vai facilitar, em rasgos de generosidade, a busca de espaços políticos ou de mercados para nossos produtos.

Rubens Barbosa, consultor, presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da Fiesp, foi embaixador do Brasil nos EUA e na Grã-Bretanha

Garapa verde Xico Graziano


Artigo -
O Estado de S. Paulo
27/2/2007

A América rural está eufórica. Regiões norte-americanas decadentes se animam com a chegada das destilarias de milho. Agricultores sonham com o novo filão do progresso. Até Bill Gates planeja investir no etanol. À toa não é.

Mistura de patriotismo com riqueza, os empresários já inventaram poderoso slogan: “Our crop, our fuel, our country.” A placa foi testemunhada por Timothy Egan, jornalista do New York Times. Após discurso do presidente Bush, em janeiro, conclamando os Estados Unidos a substituírem, em dez anos, 20% da gasolina por álcool, o assunto virou febre nacional.

Os Estados Unidos, surpreendentemente, já empatam com o Brasil na fabricação de álcool. A diferença fica por conta da matéria-prima: lá se utiliza o milho na fermentação, aqui cabe à cana-de-açúcar fornecer o caldo. Acontece que a cana exige condição tropical para vegetar o ano inteiro, impossível no Hemisfério Norte, onde o solo fica gelado no inverno. Azar dos gringos. O rendimento do cereal é 50% menor que o da gramínea.

Fortes subsídios governamentais pagam a conta do caro biocombustível norte-americano. Pouco importa. A perspectiva de atender ao fabuloso mercado da maior frota de veículos do planeta esquenta os agronegócios como nunca. Afinal, a proposta Bush exige reajustar a meta do programa de combustíveis renováveis, passando de 28,5 bilhões para 132,5 bilhões de litros, até 2017. Para comparação, o Brasil produz, hoje, cerca de 20 bilhões de litros.

A firme procura por milho elevou sobremaneira seu preço no mercado, onerando os produtores de aves e suínos, cuja ração se baseia no amarelo cereal. Ao Sul, o vizinho também paga seu preço. A popular tortilha, adorada pelos mexicanos, quase dobrou de preço em dois meses, causando revolta nas ruas. Briga da energia contra a comida.

Nada, todavia, segura a onda do etanol. O temor pelo aquecimento global e o preço do barril de petróleo condenam a queima de combustível fóssil e empurram a opinião pública norte-americana a favor da fonte renovável de energia. Demorou, mas eles acordaram. Sonham com a fortuna.

Além do rico Tesouro, outra vantagem, uma sorte natural, favorece os Estados Unidos nessa empreitada. Seu território, em geral, mostra fartura de água. Estudiosos começam a apontar a falta d’água como séria limitação à agricultura energética, como na China e na Índia.

Inventor do Proálcool, o Brasil assiste meio ressabiado a essa escalada norte-americana. Claramente o País tenta tirar vantagem de sua boa experiência. Primeiro, sonha em vender muito combustível para os tanques norte-americanos. Embora os gigantes do Norte taxem a entrada do álcool brasileiro à razão de US$ 0,14 por litro, foram exportados para aquele mercado, em 2006, 1,75 bilhão de litros, dez vezes mais que no ano anterior. Cresce o volume.

Favorece o interesse nacional o menor custo de produção do álcool de cana. Vale também para os europeus, bem como para o Japão, que igualmente demandam o biocombustível brasileiro. Mesmo com logística deficiente, navios zarpam repletos mundo afora. A construção do alcoolduto, prometida para logo, tornará as exportações ainda mais competitivas.

A Petrobrás pensa em criar uma subsidiária para cuidar desse rentável negócio. O governo topa criar legislação específica para melhor regular os estoques, com segurança de preço, no longo prazo, para os usineiros. Até capitalista bobo vai ganhar dinheiro.

Ao contrário dos Estados Unidos, que aproveitam cereal nobre para produzir álcool, no Brasil a garapa verde não atrapalha o preço dos alimentos. E o front de expansão dos canaviais se dá, principalmente, sobre pastagens degradadas. Vale a pena, entretanto, prestar atenção. Em certas regiões paulistas, a cana pressiona áreas de citricultura e de soja. Cuidado nisso.

Bush chegará em breve. Dizem que vem procurar parceria no etanol. No jogo internacional, assusta alinhar com os norte-americanos. Mas não resta saída. Grupos forasteiros procuram terras e sócios para investir aqui. Projeto bancado pela Sempra Energy, gigante do gás norte-americano, tenciona instalar 12 usinas de álcool no Tocantins. Significam cerca de 700 mil hectares cultivados. Outros 800 mil hectares se buscam arrendar no Maranhão e em Mato Grosso.

Dois perigos espreitam ao largo.

Primeiro, começa a se aprofundar certa desnacionalização da atividade sucroalcooleira do País. Fundos de investimento, nacionais e estrangeiros, também entram no ramo dos combustíveis renováveis. É bom, pois capitaliza o setor. É ruim, porque bota aventureiro na jogada.

Segundo, e pior, corre-se o risco de, nessa escalada, haver desleixo com a natureza. Se vier, o combustível verde perderá seu capital ambiental. Pecado mortal será afrontar a Hiléia. Ninguém, em todo o mundo, aceitará que os canaviais sirvam ao desmatamento da Amazônia. Nem que facilitem o sumiço do cerrado.

Poucas plantas cultivadas protegem o solo como a cana-de-açúcar, evitando a erosão. Tampouco se conhece cultura limpa, em que inseticidas e fungicidas sejam dispensados. No balanço energético, vence qualquer concorrente. A vinhaça, resíduo da destilaria, antes destinada a matar rios, agora fertiliza o solo.

A sociedade, com razão, está preocupada. Se os usineiros, famosos pela ganância, tomassem juízo, topariam firmar um protocolo ambiental. Nele se comprometeriam com a prática da agricultura sustentável, cumprindo a agenda verde-azul. Sem aumentar as medievais queimadas. Este, sim, é o acordo que interessa ao futuro do álcool.

Estratégia do esbulho


editorial
O Estado de S. Paulo
27/2/2007

“Vamos aumentar a pressão, gastar mais o nosso gás, porque esse governo é igual feijão velho e duro - se não botar na panela de pressão, não cozinha.”

Estas palavras da porta-voz da coordenação nacional do Movimento dos Sem-Terra (MST), Marina dos Santos, expressam a estratégia global do movimento, a ser desenvolvida em muitas frentes e praticamente todas as regiões do País, a partir de março e tendo em abril seu ponto culminante - mas nem por isso devendo arrefecer no resto do ano. Trata-se de uma espécie de estratégia do esbulho. A estratégia emessetista pretende não apenas repetir o volume de invasões e ocupações de propriedades rurais ocorridas no primeiro mandato do presidente Lula, especialmente em razão do desrespeito (sem derrogação) à lei vigente no governo anterior, que proibia a distribuição pelo programa de reforma agrária de terras invadidas, antes de dois anos de sua desocupação. Até mesmo o “Abril Vermelho” de 2004, que representara o ápice da violência levada por esses movimentos ditos “sociais” ao meio rural, com a exacerbação de suas práticas “habituais” de derrubadas de cercas, matança de animais, depredação de sedes e de equipamentos de fazendas, colocação de empregados rurais em cárcere privado, afora a ocupação de rodovias, saques de cargas de caminhões, depredação e saques de cabines de pedágio e outros vandalismos assemelhados, não parece, aos atuais líderes do MST, pressão suficiente a ser repetida. O objetivo é buscar-se um upgrade no esbulho, um novo patamar de operações mais vastas, intensas e abrangentes, tendo em vista não só a rapidez de execução no programa de reforma agrária, mas a contestação de determinadas políticas governamentais e o ataque a empresas do setor do agronegócio, especialmente as que atuam com reflorestamento e sementes patenteadas.

Partindo do diagnóstico que vislumbra uma esquizofrenia (ou dupla personalidade) do governo, que seria “eficiente e capaz para as grandes empresas e governinho para os pobres”, o MST e seus coligados organizam, com precisão, um programa destinado a atingir um nível sem precedentes de invasões, ocupações e manifestações públicas em favor de suas peculiares diretrizes ideológicas. Em março o Movimento dos Atingidos Por Barragens (MAB), que reivindica terras para famílias que foram desapropriadas com a construção de hidrelétricas, fará manifestações nas capitais, para protestar contra o preço das tarifas de energia. O MST participará de atos contra o presidente norte-americano George W. Bush, cuja visita ao Brasil, com projetos para o setor de produção de álcool, é vista com o viés nacionalista, que se opõe à ingerência estrangeira no modelo de produção agrícola nacional.No mesmo mês a Via Campesina, organização internacional (de agricultores subsidiados europeus) que no Brasil congrega cinco entidades, entre as quais o MST e a Comissão Pastoral da Terra - que aí não vêem qualquer traço de “ingerência estrangeira” -, desencadeia uma série de ações contra o agronegócio, sempre com pretextos ambientalistas, mas na verdade contrários a qualquer avanço científico-tecnológico que favoreça o desenvolvimento, a produtividade e a competitividade internacional da agricultura e da pecuária brasileiras.

É verdade que o MST tem seus problemas de disputa interna de poder, que resultam em precipitação de ações de líderes defenestrados, tal o caso de José Rainha Júnior e as 13 fazendas que invadiu no Pontal do Paranapanema, em também contestada joint venture com setores da Central Única dos Trabalhadores. Rainha, considerado um dissidente pela direção nacional do MST, age “por conta própria”, nada tendo a ver as suas ações no Pontal com a “estratégia de esbulho” que descrevemos neste editorial. No momento ele está mais entretido com as autoridades estaduais de São Paulo do que com as federais. Do ponto de vista dos esbulhados, no entanto, não há distinções a fazer. Os efeitos dos esbulhos são os mesmos, sejam quais forem seus autores.

A retórica da 'Opep do etanol'


editorial
O Estado de S. Paulo
27/2/2007

Os brasileiros tendemos muitas vezes a superestimar o alcance de eventos no âmbito das relações internacionais que envolvam o País. A passagem do presidente George W. Bush por São Paulo, na quinta-feira da próxima semana, parece ser um desses acontecimentos dos quais se espera, com um otimismo talvez insuficientemente alicerçado nos fatos, que produzam benefícios incomuns para o interesse nacional. Para evitar decepções futuras, como ocorreu em mais de uma ocasião, conviria moderar as expectativas sobre os propósitos e os resultados da rápida visita do titular da Casa Branca. Manda a experiência, portanto, tomar com o proverbial grão de sal as trepidantes avaliações de setores interessados, segundo os quais o motivo da viagem de Bush seria a intenção dos Estados Unidos de formar uma portentosa parceria com o Brasil no setor de biocombustíveis.

Isso, por sua vez, daria lugar a nada menos do que uma “Opep do etanol” - um pujante mercado hemisférico de álcool que garantiria o suprimento crescente do produto ao maior consumidor mundial de energia e “viciado em petróleo”, no dizer de Bush. É verdade que, em conjunto, os dois países já respondem por quase 3/4 da oferta mundial de etanol. É verdade também que a ainda irrisória participação de fontes alternativas na matriz energética dos Estados Unidos só deverá crescer daqui para a frente, pelo efeito combinado da questão ambiental com a questão geoestratégica do acesso ao petróleo do Oriente Médio. Mas não é primariamente por isso que o presidente virá a São Paulo.

A sua viagem, e não só ao Brasil, é antes de tudo uma tentativa de reparar o tratamento negligente e não raro áspero de Washington em relação à América Latina nos últimos anos. Bush não apenas deixou de cumprir a sua promessa da campanha presidencial de 2000 de estabelecer um “compromisso fundamental” com a região, como ainda - no clima belicoso do pós 11 de Setembro - entregou a condução da sua política latino-americana a alguns dos mais intratáveis falcões da administração republicana, adeptos da rombuda teoria de que os países ou são aliados incondicionais dos EUA ou são aliados objetivos de seus inimigos. Com a ida de Condoleezza Rice para o Departamento de Estado, em 2005, a atitude americana diante dos vizinhos continentais voltou a ser cordata - e mais inteligente para a sua prioridade de conter a penetração do chavismo.

No caso específico do Brasil, o etanol vem a calhar para essa política de boa vizinhança, já favorecida pelo entendimento pessoal surpreendentemente amistoso entre Bush e Lula. Nem por isso há razões para crer que a retórica da Opep do etanol fará os Estados Unidos abrir efetivamente o seu mercado ao produto exportado pelo Brasil, sobre o qual incide uma tarifa protecionista de US$ 0,54 por galão. Nem um dos mais entusiastas defensores americanos da parceria no setor, o conselheiro da secretária Condoleezza para questões energéticas internacionais, Greg Manuel, admite mudanças na política aduaneira. “As tarifas não estão na mesa de negociações”, afirma sem rebuços, em entrevista ao Estado (Caderno Aliás, de domingo).

Nem era de esperar que estivessem, dado o poderio do lobby dos produtores de milho - a fonte do etanol americano -, sem falar na fragilidade de Bush em face de um Congresso de maioria democrata. No seu discurso do Estado da Nação, em janeiro último, ele mencionou a meta de redução de 20% do consumo de gasolina no país até 2017, o que exigiria uma oferta adicional de 132 bilhões de litros de combustíveis alternativos. Nesse caso, exportar etanol para a América do Norte seria um negócio lucrativo, apesar da barreira protecionista. O problema é que essa meta é puramente declaratória: faltam a Bush as condições políticas para ir das palavras aos fatos. De qualquer maneira, não tem sentido especular sobre o tempo que os EUA levarão para trocar o combustível fóssil pelo biocombustível.

A meta modesta dos americanos não vai além de uma participação de 5% dos biocombustíveis na sua matriz energética, no médio prazo. A independência americana do petróleo, de que fala Bush, é um “mito político”, diz o ex-embaixador saudita em Washington Turki al-Faisal. Ainda não há como desmenti-lo.

Dora Kramer - Deformação consentida



O Estado de S. Paulo
27/2/2007

Assim como se fosse a coisa mais natural do mundo, o presidente Luiz Inácio da Silva ontem em seu programa de rádio - Café com o Presidente - acabou incorporando o troca-troca entre partidos ao cardápio dos desvios de conduta política considerados aceitáveis sob a ótica petista de governar.

Ao justificar o atraso na reforma ministerial, Lula corroborou a tão condenada (e condenável) prática do troca-troca e deu a ela nova denominação. Passa a se chamar 'processo de alinhamento entre partidos'.

Repete, guardadas as proporções da legalidade entre as questões, o gestual de dois anos atrás, quando o uso de caixa 2 nas campanhas eleitorais, rebatizado de 'recursos não-contabilizados', foi usado numa entrevista do presidente em Paris para justificar os negócios do PT com o condutor do valerioduto.

Conforme disse o presidente em seu programa, é preciso aguardar o fim do 'processo de alinhamento' para, então, dar início à montagem da equipe do segundo mandato.

Ao ser questionado sobre a relação de causa a efeito entre a reforma e a escolha do novo presidente do PMDB, Lula argumentou o seguinte: 'Este não é o problema. O problema é que os partidos estão num processo de alinhamento. Eu vejo: tal partido tinha 40, passou para 46, tal partido para 48, tal partido tinha 65, passou para 60. Ou seja, ainda não terminou esse movimento dentro dos partidos, o que me dará muito mais tranqüilidade na montagem do governo.'

Quer dizer, o problema não é um partido ter sido eleito com 40 e, três meses depois, passar para 46, ou sair das urnas com 65 e daqui a pouco ter 60. A questão principal, na visão do presidente, é a conclusão da obra mediante a qual ele terá 'muito mais tranqüilidade' para montar o governo.

Por essa visão, quando isso acontecer, a pátria estará salva e o cenário bastante nítido para que se possa fazer a divisão da Esplanada dos Ministérios e adjacências sem perigo de errar no equilíbrio da distribuição.

A tese surpreende ao ser exposta por alguém que defende com tanto ardor a reforma política - 'prioritária', segundo o discurso de posse -, a respeito da qual se há um ponto de consenso é justamente o da necessidade urgente de estabelecer algum mecanismo de fidelidade partidária a fim de assegurar o respeito à vontade do eleitor na urna, fortalecer os partidos e dar um mínimo de organização ao sistema político.

Do presidente, o balizador das questões da República, esperava-se uma posição politicamente mais educativa. O que se ouviu foi a aceitação do troca-troca como pré-requisito indispensável à montagem do governo.

Discretamente

O presidente do PMDB, deputado Michel Temer, acha injusta a avaliação feita aqui de que seu partido deixou de lado a agenda de compromissos apresentada no ano passado ao governo para se preocupar apenas com os cargos a serem ocupados no ministério.

Segundo Temer, a pauta está sendo tocada, mas 'com discrição', como convém 'a quem quer agir e não produzir fatos políticos'. Para demonstrar, o deputado envia um relatório de atividades.

1. Reforma tributária: o ex-governador Germano Rigotto foi indicado o interlocutor para tratar com o Palácio do Planalto do assunto.

2. Reforma política: está na pauta do próximo programa de TV do PMDB, que tem se 'movimentado' no Congresso para pôr a reforma em votação.

O texto contestado por Temer não diz que o partido não 'pensa' ou não 'conversa' sobre a agenda proposta. Aponta que não reage a posições conflitantes do governo com o proposto nem dá aos compromissos da agenda o destaque conferido aos cargos.

3. Crescimento de 5% : O presidente do PMDB cita o PAC e considera que o partido foi 'um dos principais móveis' de seu lançamento.

A referência não foi ao PAC, mas à exigência do crescimento de 5%, cujo arquivamento por parte do governo não provocou reação do PMDB.

4. Contenção de gastos: 'O que está no PAC não é gasto derivado apenas de recursos públicos.'

O reparo foi ao fato de o partido aceitar a posição do presidente Lula contrária à redução de despesas. Nada a ver com o PAC.

5. Renegociação da dívida dos Estados: 'Temos ouvido nossos governadores e no Conselho Político já levantamos essa questão.'

Conversar é bom, mas a decisão do governo, claramente contra, não é contraditada pelo PMDB.

6. Fortalecimento da Federação: 'Toda atuação do partido é no sentido de fortalecê-la.'

O texto não afirma o contrário, apenas aponta o item como inócuo, visto que enfraquecer a Federação não está nos planos de ninguém.

7. Conselho Político: 'Foi criado como propusemos; já se verificaram três reuniões com debate e oportunidade de sugestões.'

Aqui Michel Temer tem razão ao corrigir de dois para três o número de encontros já realizados. Quanto ao conteúdo dos 'debates' e 'sugestões', continua inédito, sob o manto da mais absoluta discrição.

Celso Ming - Nova pressão sobre o câmbio




O Estado de S. Paulo
27/2/2007

Um equívoco não se torna verdade apenas porque seja muitas vezes repetido.

Um desses equívocos tantas vezes repetido é o de que bastaria que o Banco Central derrubasse corajosamente os juros para que o dólar deixasse de derrapar no câmbio interno.

É verdade que a derrubada dos juros ajudaria, se não a reverter a valorização do real, ao menos a reduzir a velocidade com que ocorre. Mas há muita confusão sobre isso.

Convém ter clareza sobre o fato de que ainda são os exportadores que estão derrubando o dólar. Apesar do crescimento das importações, o superávit comercial deste ano não deverá ser muito diferente dos US$ 46,1 bilhões obtidos no ano passado e isso deixa enorme sobra de dólares no câmbio interno. Mas a exuberância exportadora já não explica tudo. Até há algumas semanas, era irrelevante a entrada líquida de moeda estrangeira pela Conta de Capitais, razão pela qual não fazia sentido dizer que os dólares afluíam para aproveitar a diferença entre juros internos e externos (arbitragem). Isso não significa que não houvesse arbitragem ou que ela não fosse importante. Significa apenas que, apesar dela, o fluxo financeiro não era relevante para definir a cotação do dólar. Podia-se até afirmar que mais importante era o fato de que a saída de capitais já não é tão forte como há alguns anos - porque os capitais preferem permanecer aqui para tirar proveito dos juros internos mais altos.

Afora isso, desde janeiro, o afluxo de capitais está mais denso e os dólares vêm, sim, para aproveitar a diferença de juros. Mas - atenção - isso nada tem a ver com especulação nem com o nível dos juros básicos (Selic).

A maior parte desses capitais são empréstimos de prazo mais ou menos longo, feitos por empresas ou instituições nacionais, para financiar capital de giro ou projetos de investimento. Vêm porque os juros são baixos, em torno de 7% ao ano, mais baixos do que os quase 30% ao ano cobrados, em média, pelos bancos locais.

Essas contratações de empréstimo eram evitadas porque o tomador temia o risco cambial. Esse risco implicava endividar-se em dólares, converter esses dólares em reais às cotações relativamente baixas e ter de enfrentar eventual desvalorização cambial que, na hora de pagar a dívida, renderia menos dólares por reais. Reservas perto dos US$ 100 bilhões e risco cada vez menor de desvalorização do real diante do dólar vêm, assim, encorajando os tomadores brasileiros a endividar-se em dólares.

E a entrada muito mais forte desses capitais aumentou a pressão do capital financeiro sobre o câmbio interno cujas cotações não são mais fixadas quase tão-somente pelo saldo comercial.

Só que - mais uma vez atenção - não seria a redução mais forte da Selic que reduziria esse afluxo. E isso por uma única razão: porque os juros com que os bancos brasileiros trabalham nas operações de financiamento para pessoas jurídicas são muito mais altos, em razão do enorme spread (diferença entre custo de captação e de aplicação) dos bancos, o que vem puxando os juros anuais para 26% ao ano, como ontem divulgou o Banco Central.

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