Vamos caminhar juntos
O embaixador americano no Brasil diz que a cooperação
entre os dois países nunca foi melhor, mas que a exigência
de visto para viajantes vai continuar
Okky de Souza
Lailson Santos | "Parceria não significa ter os mesmos pontos de vista sobre todos os assuntos. Assim é a democracia" |
Quando os presidentes Lula e George W. Bush se encontraram por duas vezes, no início do ano, o embaixador americano no Brasil, Clifford Sobel, sentiu um sabor de vitória. Além de fecharem um acordo de intenções na área dos biocombustíveis, Lula e Bush manifestaram o propósito de estreitar as parcerias entre o Brasil e os Estados Unidos. Essa é justamente a bandeira que o diplomata carrega desde que se instalou em Brasília, há um ano. A gestão de Sobel é marcada pela busca de cooperação mútua entre os dois países nos mais variados campos – não só entre os governos, mas também na iniciativa privada. Espantado com a ausência de turistas americanos nas capitais do Nordeste, ele pretende tentar convencer as companhias aéreas de seu país a criar rotas para cidades como Salvador e Recife. Antes do Brasil, Sobel, de 58 anos, foi embaixador na Holanda por quatro anos. Fez carreira como empresário e atuou à frente da bem-sucedida empresa de telefonia pela internet Net2Phone. Há muitos anos recolhe doações para o Partido Republicano. Casado, com cinco filhos, Sobel já consegue abrir suas palestras com pequenos discursos em português. Numa visita a São Paulo, Sobel falou a VEJA. Na mesma noite, embarcou para os Estados Unidos, dessa vez em missão particular – foi conhecer o novo netinho.
Veja – O senhor acaba de completar um ano à frente da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil. O que mudou na relação entre os dois países nesse período?
Sobel – Nos meses seguintes à minha posse na embaixada, muitos brasileiros me perguntavam se a América Latina tinha espaço na política externa dos Estados Unidos, naturalmente voltada para os conflitos no Oriente Médio. Queriam saber de que maneira o governo americano enxergava o Brasil. Eu sentia que havia uma boa dose de ceticismo nessas perguntas, uma crença de que o Brasil tinha pouca importância para os americanos. O ceticismo de meus interlocutores se evaporou completamente depois de março passado, quando o presidente Lula se encontrou com o presidente Bush, primeiro em São Paulo e depois em Camp David, a casa de veraneio da Presidência americana.
Veja – Que resultados produziram os encontros entre os presidentes Lula e Bush?
Sobel – Desde então tem havido um empenho crescente entre os dois líderes em estabelecer parcerias que beneficiem ambos os países, e isso inclui também a iniciativa privada. A prosperidade individual de nossas nações vem se tornando cada vez mais integrada. Os Estados Unidos são um dos maiores parceiros comerciais do Brasil. Muita gente não sabe que os investimentos do Brasil nos Estados Unidos cresceram 300% no ano passado. Em outros tempos, eu poderia dizer que o crescimento da economia brasileira é bom para os Estados Unidos. Agora, posso dizer tranqüilamente que o crescimento da economia americana também é bom para o Brasil. Nossas duas nações são parceiras. Ninguém pode contestar isso. Daí ser importante fazer o que os nossos líderes estão fazendo atualmente, ou seja, descobrir formas de cooperação mútua. Isso não significa que tenhamos os mesmos pontos de vista sobre todos os assuntos, que concordemos em tudo. Assim é a democracia.
Veja – Quais são as novas formas de cooperação mútua entre os Estados Unidos e o Brasil?
Sobel – A cooperação cujo progresso é mais aparente está no campo dos biocombustíveis. O Brasil tem obtido muito sucesso em seu programa de biocombustíveis e, para os Estados Unidos, alcançar esse mesmo nível de capacitação é uma questão de segurança nacional. Queremos substituir 20% dos combustíveis fósseis por biocombustíveis até 2017. Desde a assinatura de um memorando de entendimento entre Brasil e Estados Unidos, em março, caminhamos no sentido de tornar essa nova forma de energia um recurso com o qual, juntos, os dois países não somente se beneficiarão como também beneficiarão outros países e o mundo inteiro através da redução das emissões de gases que causam o aquecimento global. Os biocombustíveis estão rapidamente se tornando um recurso energético democrático porque podem ser produzidos, refinados e utilizados em nações em desenvolvimento, dando-lhes maior independência energética. Há três semanas, um comitê dos dois governos se reuniu em Brasília para discutir a melhor maneira de integrar universidades particulares e ONGs em processos que estamos desenvolvendo em parceria, como a unificação das normas regulatórias dos biocombustíveis. Nosso secretário adjunto de energia, Andy Karsner, já esteve no Brasil duas vezes. Ele controla um orçamento de 1,5 bilhão de dólares para pesquisa e desenvolvimento e estuda como poderemos trabalhar em conjunto com o Brasil.
Veja – Que outros projetos de cooperação entre Brasil e Estados Unidos estão a caminho?
Sobel – Veja que coisa incrível: quase não há turistas americanos no Nordeste brasileiro. Pretendemos estimular o turismo de nossos compatriotas para essa região. O Nordeste é o pedaço do Brasil mais próximo dos Estados Unidos, abriga alguns dos locais mais bonitos do país e está cheio de europeus, mas não de americanos. Queremos trabalhar em conjunto com a iniciativa privada para criar novas rotas aéreas entre as cidades americanas e aquelas do Nordeste brasileiro. O potencial turístico dessas novas rotas é imenso. Muitos outros projetos de cooperação estão em fase de negociações em áreas tão diversas quanto o desenvolvimento de vacinas e a criação de centros de excelência, locais onde o setor privado e o meio acadêmico trabalhem em conjunto, permitindo às melhores mentes criar e inovar.
Veja – O que pode mudar com as novas formas de colaboração entre Brasil e Estados Unidos?
Sobel – Hoje, muitos produtos brasileiros exportados para os Estados Unidos são inspecionados por laboratórios americanos. Trabalhamos agora para que esse controle de qualidade passe a ser feito por laboratórios brasileiros, a partir de padrões mutuamente aceitos. Muitas novidades devem surgir depois de outubro, quando ocorrerá um fórum de discussões entre presidentes de grandes companhias americanas e brasileiras com o objetivo de fortalecer os laços econômicos entre os dois países. Do lado americano, estarão presentes os presidentes de empresas como Citibank, General Motors, Coca-Cola e Intel, além do próprio secretário de Comércio dos Estados Unidos. Pessoalmente, tenho muito orgulho de um dos projetos de responsabilidade social mantidos pela embaixada americana, o programa Jovens Embaixadores, que leva estudantes de escolas públicas brasileiras para passar uma temporada nos Estados Unidos. Os pré-requisitos para participar do programa são o bom desempenho acadêmico, capacidade de liderança e consciência social. Neste último ano, muitas iniciativas foram tomadas no âmbito das relações Brasil-Estados Unidos. Tudo aconteceu muito rápido.
Veja – Como o crescimento veloz da China e da Índia pode influir na economia das Américas?
Sobel – Os Estados Unidos e o Brasil fazem parte de uma economia global que inclui 2,3 bilhões de pessoas na China e na Índia. Ambos os países oferecem muitas oportunidades, mas também grandes desafios. A China atrai 1 bilhão de dólares em investimentos a cada semana. Precisamos fazer frente a esse desafio em conjunto, criando um sistema comercial aberto, transparente e justo em nosso hemisfério. Diante das mudanças que ocorrem na economia global, a competitividade dos países das Américas será cada vez mais definida pelo nível de integração e cooperação entre nós.
Veja – Mas os Estados Unidos ainda impõem barreiras comerciais protecionistas aos produtos brasileiros, como etanol, tecidos e aço. Existem planos de extinguir essas barreiras?
Sobel – Estamos estudando o que podemos fazer para reduzir as barreiras comerciais, como tarifas de importação e subsídios à produção local. Mas esse é um quebra-cabeça internacional, e é difícil resolvê-lo, seja da parte dos Estados Unidos, da União Européia, do G-20 ou de outros blocos de países. Quando os Estados Unidos tomam uma posição a respeito do assunto, tem-se um país se manifestando. Quando a União Européia toma uma posição, são 27 países falando ao mesmo tempo. Quando se consideram os grande grupos de países que existem hoje, vê-se que é difícil chegar a um consenso. De qualquer maneira, o presidente Bush e o presidente Lula concordaram que precisam ser mais flexíveis para desmontar as barreiras comerciais.
Veja – O que deve ser feito para que o Brasil se torne uma economia global?
Sobel – O Brasil já é uma economia global. Seu comércio crescente, os superávits de suas contas e suas reservas provam essa afirmação. Empresas multinacionais acham um bom negócio investir no Brasil. É interessante observar a resistência da economia brasileira diante do abalo dos mercados internacionais das últimas semanas. Essa foi uma mensagem de que a economia do Brasil é forte.
Veja – Com o fracasso da Área de Livre-Comércio das Américas, a Alca, os Estados Unidos têm interesse em selar um acordo bilateral com o Brasil, a exemplo do que mantém com o México?
Sobel – Hoje, o México e o Canadá são dois dos maiores parceiros comerciais dos Estados Unidos. Estamos começando a desenvolver uma economia integrada, fortalecendo as regras e os procedimentos que regem nosso comércio e nossos investimentos. Os números provam que estamos conseguindo aumentar o nível de emprego e a prosperidade nos três países por meio dessas relações. Podemos ter políticas similares entre a América do Norte e a América do Sul. Isso não envolve nenhum tipo de ideologia. Trata-se de obter resultados. Brasil e Estados Unidos estão hoje num período intenso de diálogo bilateral, com intercâmbio cada vez maior tanto no setor público quanto no privado, assim como em nível acadêmico.
Veja – Os Estados Unidos esperam que o Brasil se torne um parceiro também nas questões ligadas à segurança, como o combate ao terrorismo?
Sobel – O presidente Bush afirmou que as esperanças de paz no mundo dependem da ininterrupta união entre as nações livres. Os países não podem mais se dar ao luxo de confiar exclusivamente em seus próprios modelos para garantir a segurança. As ameaças à paz são hoje transnacionais. A complexidade das ameaças enfrentadas por todos indicam que precisamos encontrar formas de trabalhar juntos para manter nossas fronteiras seguras e nossos países a salvo. Hoje, as organizações multilaterais se reinventam para lidar com novos problemas. Esse processo ocorre nas Nações Unidas, na União Européia e na Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan. Os programas da Otan fazem com que ela expanda sua atuação para além da América do Norte e da Europa. Ela está presente hoje no Afeganistão, sob um mandato da ONU, e em várias regiões da Ásia e da África. Isso não significa que a Otan tenha agregado novos países aos 26 que compõem a aliança. Significa que ela trabalha com parceiros globais no combate ao terrorismo e também em assistência humanitária, socorro a vítimas de desastres e intercâmbio científico. Considerando-se os vínculos históricos do Brasil com vários países da Otan, talvez o país possa assumir a liderança na formação de um grupo regional de nações na América do Sul para trabalhar em colaboração com a Otan, sempre que julgar de seu interesse.
Veja – Como o governo americano vê o discurso antiamericano do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e de seus colegas da Bolívia e do Equador?
Sobel – O governo dos Estados Unidos está sempre disposto a dialogar com os países que querem conversar com ele, incluindo a Venezuela. Trabalhamos com quem deseja trabalhar conosco. A recente viagem do presidente Bush à América Latina deixou isso bem claro. A questão central nas relações dos Estados Unidos com outros países não é ideologia, mas cooperação. Queremos colaborar para criar os alicerces de ações positivas.
Veja – Por que o governo Bush demorou tanto tempo para admitir que o aquecimento global é uma realidade e que ele pode representar uma ameaça às economias de muitos países?
Sobel – Não acho que a administração Bush tenha mudado de opinião de uma hora para a outra. Foi um processo em etapas. De qualquer modo, hoje o presidente Bush está comprometido com a luta contra o aquecimento global, juntamente com outros países.
Veja – Quando os Estados Unidos dispensarão os cidadãos brasileiros de visto para entrar no país?
Sobel – Essa não é uma questão simples. Nosso país está muito focado no tema da segurança, e não poderia ser diferente. No último século, os Estados Unidos receberam legiões de imigrantes, geração após geração. O país deseja manter uma porta aberta para os imigrantes, mas, infelizmente, depois dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, foi necessário tornar as regras mais rígidas. A imigração precisa ser feita pelos canais legais. A segurança nas fronteiras é hoje mais importante do que nunca. Há novas leis que permitem ao presidente rever os processos de concessão de vistos. Países que têm menos de 10% dos pedidos de visto rejeitados podem ser liberados dessa exigência. Infelizmente, o Brasil não se encaixa nesse caso. Mas pode ser que essa situação mude nos próximos anos.