Quando a lâmina embota, o poema torna-se só descritivo; afiada, ela atrofia o discurso |
O NOSSO João Cabral de Melo Neto -cuja obra está sendo reeditada agora pela Objetiva- é tido e havido como um poeta racional, e era ele mesmo quem o dizia. Não obstante, num vídeo feito em sua homenagem, Chico Buarque e Adriana Calcanhoto afirmaram que vão às lágrimas quando o lêem, coisa que ele seguramente não gostaria de ouvir. Sim, porque tinha horror a derramamentos emocionais e garantia que a racionalidade era o alicerce da existência. Onde está a verdade? João Cabral era de fato o poeta cerebral que se alardeia?
Concordo com ele quando exalta a importância da razão, mas é verdade também que, como disse Sartre, a realidade ultrapassa a consciência ou, como disse Shakespeare, há mais coisas no mundo do que sonha a nossa vã filosofia. Trocando em miúdos, a razão é fundamental, mas não é tudo.
Por isso mesmo, na construção do universo imaginário em que vive, o homem não se limitou ao uso de sua racionalidade, pois, se inventou a lança para caçar o bisão, inventou também as práticas mágicas que viabilizavam a caça. Enfim, desse jogo dialético da lógica e da magia, surgiria inclusive a poesia, que sempre bebeu nessas duas fontes. Mas o poeta, muito tempo depois, passou a encarnar a figura do romântico e do inadaptado social. Com Baudelaire e Rimbaud, tornou-se maldito.
No Brasil, Álvares de Azevedo, Castro e Casimiro de Abreu morreram com menos de 24 anos. Pode ser que até hoje muita gente verta lágrimas lendo os seus versos, mas João Cabral certamente debocharia deles. É que, para o autor de "Uma Faca Só Lâmina", o poema não devia ser a pura e simples expressão dos sentimentos do poeta, por mais verdadeiros que fossem, e sim uma obra objetivamente construída.
Numa conferência que pronunciou na Biblioteca de São Paulo, em 1952, João Cabral falou daqueles dois tipos de poeta: o que escreve movido pela inspiração e o que encara o poema como trabalho de arte. Enquanto o primeiro deixa fluir a linguagem, certo de que quanto mais espontâneo, mais autêntico será, o poeta "difícil" desconfia desse fluir sem controle.
João Cabral, em sua concepção anti-romântica do trabalho poético, opta pela construção objetiva do poema, dando-lhe uma vida independente, uma validade que, para ser percebida, dispensa qualquer referência à pessoa que o fez e às circunstâncias em que foi feito.
Tudo bem, essa é a teoria. E, na prática, como a coisa se deu? João Cabral começou escrevendo como surrealista, até que tomou conhecimento das idéias de Le Corbusier sobre a nova arquitetura, racional e funcionalista. E escreve: "O engenheiro sonha coisas claras / superfícies, tênis, um copo d'água".
Em contraposição aos mistérios da subjetividade, descobre a beleza do mundo real e diurno e, seguindo a teoria do arquiteto, concebe o poema como "uma máquina de comover", um artefato construído racionalmente para funcionar sobre a percepção do leitor. É dentro dessa concepção que se insere o poema "Antiode", cuja construção inovadora e lúcida ("contra a poesia dita profunda") não tem precedentes na poesia brasileira. Mas é metapoesia, poesia sobre poesia. Já o poema seguinte, "O Cão sem Plumas", é uma abertura para a vida real e seus problemas e também a descoberta do tema social, que o levará a escrever "Morte e Vida Severina", tema que perpassará, a partir daí, quase toda a sua obra. Nele, a problemática poética se confunde com a apreensão da experiência vivida, está presente em cada poema, em cada metáfora, em cada verso, quer fale de um cemitério nordestino ou de uma "bailadora sevilhana".
No fundo, tudo se resume ao modo como fazer o poema, impedindo a linguagem de fluir espontânea e fácil. Em "O Ferrageiro de Carmona", dá a receita: "O ferro não deve fundir-se / nem deve a voz ter diarréia". Em vez da fôrma, a que o ferro derretido se amolda, prescreve a forma criada pela mão que o doma, que trabalha o ferro em brasa. Mas, como a língua não é metal, para forjá-la, deve o poeta educar-se interiormente, ganhar a dureza da pedra e o fio da faca. Uma faca interna ao corpo, que seja só lâmina, cortante e ávida, para que nada lhe escape. Quando a lâmina embota, o poema cabralino torna-se só descritivo; quando afiada, ela atrofia o discurso, para que, ao leitor mesmo, ele se torne incômodo e difícil, mais tato do que fala.
Racional em João Cabral é, portanto, a sua postura como realizador do poema, mas não o poema. Que racionalidade há em imaginar ter no corpo (ou na alma) uma faca só lâmina? Isso é coisa de poeta mesmo.