Polícia suspeita que menina inglesa cujo sumiço
mobilizou a Europa foi morta pelos próprios pais
Diogo Schelp
Rui Vieira/AFP | Reuters |
A última foto de Madeleine, um dia antes de desaparecer de hotel, em Portugal: ela faria 4 anos uma semana depois | Kate e Gerry McCann com os gêmeos: comportamento gélido |
Os ingredientes de um filme de mistério estão todos aí: um jovem casal de profissionais bem-sucedidos de férias numa paradisíaca praia portuguesa. O desaparecimento inexplicável de sua filha, linda loirinha às vésperas de completar 4 anos. A polícia local, com ajuda da Scotland Yard, lança mão de recursos científicos que lembram o seriado CSI. Com tantos apelos, é natural que o destino da pequena Madeleine e de seus pais, os médicos ingleses Gerry e Kate McCann, tenha eletrizado as pessoas em escala global. Na semana passada, como se houvesse de fato um roteirista nos bastidores desse drama da vida real, as investigações sofreram uma reviravolta chocante. De beneficiários da simpatia mundial, os pais passaram a suspeitos de um crime terrível, na fronteira do impensável: a morte e ocultação do corpo da própria filha.
A suspeita da polícia portuguesa baseia-se em evidências forenses e circunstanciais, nenhuma delas conclusiva na ausência de um corpo. O álibi do casal é igualmente repleto de contradições. Madeleine desapareceu do quarto em que dormia com dois irmãos menores, no Ocean Club, resort na Praia da Luz, a 270 quilômetros de Lisboa, em 3 de maio. Os pais jantavam com amigos – outros três casais ingleses, cujos filhos também dormiam nos apartamentos – a menos de 70 metros de distância, no restaurante do hotel em que estavam hospedados. Periodicamente um dos presentes ia checar se estava tudo bem com as crianças. Kate foi ver os filhos às 22 horas e percebeu o sumiço da criança. Pelo menos é o que contou à polícia portuguesa, à imprensa e até ao papa Bento XVI, com quem o casal se encontrou no fim de maio. Nos últimos quatro meses, ocorreu a maior mobilização internacional já vista para encontrar uma criança desaparecida. Quase 2 milhões de euros foram doados para ajudar nas buscas. E se tudo não passar de farsa?
A polícia portuguesa é proibida por lei de tornar públicas informações sobre um inquérito em andamento. Nos bastidores, porém, abastece a imprensa com abundância de detalhes. Basicamente, os investigadores suspeitam que os pais tenham matado acidentalmente a menina. Podem ter-lhe dado uma bofetada (diz-se "estalo" em Portugal) que fez a menina cair e bater a cabeça. Ou podem ter sedado Madeleine e os irmãos para jantar em paz, mas errado na dose. Assustados com a morte da criança, que a autópsia certamente verificaria ter sido causada por overdose, eles esconderam o corpo durante semanas até poder se livrar dele em definitivo, transportando-o em um carro alugado. No domingo 9, Gerry e Kate – que haviam prometido só deixar Portugal quando sua filha fosse encontrada – retornaram à Inglaterra depois de a polícia portuguesa interrogar cada um deles durante várias horas.
Reuters |
Beckham entra na campanha dos McCann para encontrar Madeleine, no dia 11 de maio: mobilização de celebridades |
Oficialmente, a única certeza é que a polícia indiciou o casal no inquérito enviado à Justiça portuguesa. Foi o suficiente para desvanecer a nuvem de simpatia que cercava o casal McCann. A rádio BBC, de Londres, viu-se forçada a tirar do ar uma enquete sobre o apoio ao casal devido ao número excessivo (e constrangedor) de ligações iradas contra os pais. De uma hora para outra, o sentimento dominante passou a ser do tipo "nunca confiei na história desses aí". O que chama atenção é o comportamento de Kate, que jamais derramou uma lágrima em público. No passado, foi descrito como nobre, sereno e determinado. Agora, com a virada da maré, é visto como odiosa manifestação de frieza. O cardiologista Gerry e a clínica geral Kate, ambos com 39 anos, esforçaram-se bastante para ter as crianças, que nasceram por reprodução assistida. Há um forte indício de que os filhos já eram vistos por Kate como uma carga pesada. Em seu diário pessoal, que teve trechos publicados na semana passada pela imprensa portuguesa, ela descreve os filhos como "histéricos", reclama de como era exaustivo ficar de olho na "hiperativa" Madeleine e do marido que pouco ajudava a cuidar das crianças. O diário não serve de prova contra Kate, mas ajuda a traçar de forma pouco favorável o seu perfil psicológico.
São três os indícios mais consistentes contra os pais de Madeleine, a julgar pelas informações vazadas pela polícia. O primeiro são as contradições nos relatos das testemunhas. Kate e Gerry afirmam ter chegado às 20h30 ao restaurante para jantar com os amigos. Pelo que estes contaram à polícia, parece que o casal só chegou meia hora mais tarde. Apenas cinco minutos depois, Gerry foi ver como estavam os filhos. Às 21h30, foi a vez de um dos amigos ir ao apartamento onde estavam Madeleine e seus irmãos Sean e Amelie, gêmeos de 2 anos. O amigo apenas checou se havia barulho dentro do quarto, sem chegar a olhar para as crianças adormecidas. Meia hora depois, Kate foi ver os filhos e voltou desesperada, dizendo que Madeleine havia desaparecido. Em vez de chamarem a polícia, os pais avisaram parentes na Inglaterra, que, por sua vez, telefonaram para o canal de notícias inglês Sky News. Só às 22h30 a polícia portuguesa foi avisada. Por que a demora?
Arturo Mari/AFP |
O papa Bento XVI encontra-se com o casal McCann, ambos católicos, em Roma: ele prometeu rezar pelo retorno da menina |
O segundo indício contra os McCann são cabelos e fluidos corporais (conceito amplo que pode incluir sangue, saliva, urina, vômito e até líquidos resultantes da decomposição de corpos) encontrados no bagageiro do Renault Scénic alugado pelo casal quase um mês depois do desaparecimento de Madeleine. Em teoria, exames de laboratório podem indicar se o corpo da menina esteve no carro e até se tomou uma overdose de soníferos. Na realidade, o material parece estar demasiado degradado para permitir até mesmo a identificação por DNA. O terceiro sinal comprometedor é o comportamento de cães treinados para encontrar cadáveres. Emprestados da polícia inglesa, parecem ter sentido o cheiro da morte em um bichinho de pelúcia de Madeleine, em roupas de Kate, nos arredores de uma igreja próxima ao resort – onde recentemente foram fechadas valas de uma obra de esgoto – e na areia da praia.
Tão misterioso quanto o paradeiro de Madeleine é entender que motivos seus pais teriam para agir como a polícia acredita que eles agiram. "A frieza demonstrada pelo casal só se costuma ver em pais que não nutrem nenhum afeto pelos filhos", diz Antonio de Pádua Serafim, coordenador do Núcleo de Psiquiatria e Psicologia Forense da Universidade de São Paulo. Em muitos países, os pais são os primeiros a ser investigados quando uma criança desaparece. A polícia portuguesa não pensa assim. A primeira reação foi investigar o que parecia ser um seqüestro. Quando finalmente mudou de rumo, praticamente todas as evidências forenses já estavam degradadas. "Essa é a investigação de maior repercussão de que participei na minha carreira. Perto de 10% de nosso contingente foi mobilizado nas buscas", disse a VEJA Olegário Souza, inspetor-chefe da Polícia Judiciária portuguesa. Quase nada do que a polícia reuniu contra o casal poderá ser usado num tribunal enquanto não for encontrado o corpo de Madeleine. Sem ele, não há como saber se está morta nem como acusar formalmente seus pais pelo crime. Se a menina jamais for encontrada, morta ou viva, Gerry e Kate carregarão para sempre a mancha da suspeita de ter cometido o mais terrível dos crimes.
Com reportagem de Paulo Passos, de Lisboa, e Daniel Salles
Foto Paulo Duarte/AFP