Cartas de Madre Teresa mostram que, assim
como os santos, ela viveu o tormento
de questionar a existência de Deus
Vanessa Vieira
A missionária Madre Teresa de Calcutá cruzou o século XX como a representação perfeita da boa cristã. A fé inabalável que demonstrava e sessenta anos de trabalho ininterrupto com os miseráveis, doentes e abandonados renderam-lhe a alcunha de "santa das sarjetas" e também um Prêmio Nobel da Paz, em 1979. Sua determinação em ajudar o próximo, dizia ela, vinha da convicção de que Cristo estava presente em todos os lugares, "em nosso coração, no sorriso que damos e no sorriso que recebemos". Agora, dez anos após a morte de Madre Teresa, acaba de vir à tona um outro lado de sua vida interior. Nele, em lugar da fé incondicional, movia-se um turbilhão de dúvidas quanto à presença de Cristo em sua vida, quanto ao poder das orações e até mesmo quanto à existência de Deus. No íntimo, a religiosa, que dizia enxergar a iluminação divina em todos os lugares, lutava para acreditar no que pregava. A outra faceta de Madre Teresa emerge de sua longa correspondência com seus confessores, só agora revelada e reunida no livro Mother Teresa: Come Be My Light (Madre Teresa: Venha Ser Minha Luz), que será lançado nos Estados Unidos nesta semana. "Há uma escuridão terrível dentro de mim. Tem sido assim desde que comecei meu trabalho", desabafa ela a certa altura.
"Disseram-me que Deus me ama, e ainda assim a escuridão, o frio e o vazio são tão grandes que nada toca minha alma. Terei eu errado ao me entregar cegamente ao chamado do Sagrado Coração?" |
A iniciativa de compilar as cartas confessionais de Madre Teresa e publicá-las foi do padre Brian Kolodiejchuk, que conduz o processo de canonização da missionária. Não há contradição no fato de que o próprio padre que postula a santidade de Madre Teresa exponha suas dúvidas. A Igreja considera que as crises de fé são ritos de passagem, muitas vezes necessários para alcançar a verdadeira iluminação. São inúmeros os santos que, em vida, admitiram ter lutado contra a ausência de fé. "Quando escrita por terceiros, a vida dos santos costuma ser narrada como um caminho reto em direção a Deus, mas, quando o santo deixa seus próprios depoimentos, ficam evidentes os altos e baixos da sua fé", aponta Lindomar Rocha, da PUC de Minas Gerais. O próprio Cristo, segundo os relatos bíblicos, teve um momento de dúvida na cruz, ao questionar: "Deus, Deus, por que me abandonaste?"
São João da Cruz: a "noite escura" da alma |
Santo Agostinho (354-430), o pensador que deu suporte racional ao cristianismo, deparou com muitas dúvidas em sua fé. Como pensador, ele partia do princípio de que, para acreditar nos dogmas religiosos, era necessário compreendê-los. Mas, à medida que os investigava, mais lhe surgiam questionamentos. Santo Agostinho só consolidou sua fé ao chegar à conclusão de que seu enunciado se encontrava incompleto: para compreender os mistérios da fé, é necessário acreditar neles primeiramente. No século XVI, o espanhol São João da Cruz criou a expressão "noite escura" para descrever a etapa intermediária, de dúvida e descrença, entre a certeza simples na existência de Deus e o último nível de consciência, em que o homem se encontra com o Criador. No caso de Madre Teresa, chama atenção o longo período que durou sua "noite escura". As cartas em que ela manifesta dúvidas com relação à própria fé abrangem um período de cinqüenta anos. Para o padre Kolodiejchuk, autor do livro, essa longa jornada de angústias e de dúvidas, em vez de desmerecer a missionária, apenas enaltece suas virtudes. "Ela não sentia o amor de Cristo dentro de si e poderia ter-se fechado. Mas estava de pé toda manhã às 4h30, sempre pronta a se dedicar em tempo integral aos menos favorecidos. Esse continua sendo um exemplo poderoso", diz ele.