Modelo queimada por bandidos passou por dez
cirurgias. "No começo eu não me reconhecia"
Marcelo Bortoloti
Fotos arquivo pessoal e Oscar Cabral |
Bia Furtado na semana passada, quando saiu do hospital, e em foto de modelo: a recuperação é lenta e dolorosa |
Em dezembro passado, a modelo capixaba Bia Furtado, 30 anos, acordou no meio da noite com barulho de tiros. Estava num ônibus, voltando para São Paulo, depois de passar o Natal com a família no Espírito Santo. O veículo, da viação Itapemirim, tinha passado pelo Rio de Janeiro para trocar de motorista. De sua poltrona, a modelo viu o ônibus parar na pista e um bandido subir para saquear os passageiros. Ao seu lado, uma senhora tentou tranqüilizá-la dizendo que tudo iria acabar bem. Ela estava errada. Um segundo homem entrou com um galão de gasolina nas mãos e espalhou o combustível pelo corredor, molhando quem estava nas primeiras poltronas. Depois riscou um fósforo e viu a chama arder com 28 pessoas lá dentro. O ônibus, com ar-condicionado, tinha as janelas travadas. "Começou a pegar fogo em todo mundo, e me vi desesperada porque não conseguia abrir a janela. A fumaça estava sufocando", diz Bia. Com socos e pontapés, alguns passageiros tentavam em vão quebrar os vidros. É um daqueles momentos em que a vida toda passa pela cabeça. Bia iniciou a carreira ainda criança, quando ia de ônibus da cidadezinha de Muqui, onde morava no sul do Espírito Santo, até a capital, Vitória, fazer um curso de modelo e manequim. Mudou-se para São Paulo, onde conseguiu ser uma das 150 modelos da agência Mega. Acabara de comprar um apartamento novo junto com o namorado, o estilista Roberto Bacellar, e tinha planos de se casar em setembro. Quando saiu daquele ônibus, com 35% do corpo queimado, incluindo rosto, braços e mãos, viu a carreira ser interrompida de forma brutal.
O veículo foi abordado por vinte traficantes armados. Eles estavam em guerra com a polícia. Até hoje, três meses depois, ninguém sabe ao certo o motivo do ataque. O fogo se alastrou em poucos minutos, sem dar chance para nenhuma reação, a não ser o pavor. Um passageiro da última poltrona conseguiu quebrar duas janelas, pelas quais escapou a maioria dos sobreviventes, inclusive a modelo. "Meu corpo começou a melar, e eu pensei: 'Meu Deus, estou derretendo'", diz. Do lado de fora, a polícia havia chegado ao local e trocava tiros com os traficantes. Quem conseguia escapar do incêndio entrava no meio do fogo cruzado. Bia se atirou pela janela e permaneceu no chão, ferida, mas fingindo-se de morta com medo de ser atingida pelos bandidos. Arrastou-se até uma casa, onde dois moradores a socorreram e levaram ao hospital. O resultado do ataque foi deplorável: sete corpos carbonizados e catorze passageiros hospitalizados, quatro deles em estado grave. Dois acabaram morrendo. Bia teve queimaduras de terceiro grau no rosto, nos ombros, nas costas, no braço direito e nas duas mãos. Uma delas ficou com os tendões à mostra. Ao chegar ao hospital, o prognóstico era aterrador: ela podia morrer ou, se sobrevivesse, perder as mãos.
Foram quinze dias no CTI. Quando recobrou a consciência, demorou um pouco a acreditar na barbaridade de que tinha sido vítima. Por uma defesa natural do cérebro, passou mais de uma semana tendo alucinações. Pensava estar num cruzeiro marítimo. Ela só voltou à realidade no meio do tratamento, com a ajuda de psicólogos e da família. O esforço para recompor as partes queimadas do corpo foi árduo. Dez cirurgias no total, as primeiras para remover tecidos mortos, depois para enxertar pele, retirada do couro cabeludo e de outras partes do corpo. "Queimadura é a situação mais grave que o corpo pode suportar", diz o cirurgião plástico Marco Aurélio Pellon, que acompanhou o caso. Ela não sentiu dor na hora do ataque por causa da adrenalina. Dolorosos foram o tratamento de recuperação, principalmente nas sessões de fisioterapia, e as trocas de curativo. Bia pediu que retirassem os espelhos do quarto, não queria se ver. Só começou a se olhar aos poucos, quando os médicos incentivavam: "No começo eu não me reconhecia com aquele rosto todo inchado. Lembrava das minhas fotos e a referência que tinha de mim era essa. Até hoje ainda choro muito".
Do estado em que chegou ao hospital até receber alta, no último sábado, depois de 72 dias internada, a modelo teve um sensível avanço. Ainda caminha com dificuldade e não movimenta a mão direita. Mas as feridas do rosto começam a cicatrizar e ela já consegue falar sobre o que aconteceu, embora com os olhos marejados. O tratamento ainda deve durar dois anos, e nos próximos seis meses ela terá de usar uma máscara no rosto 24 horas por dia para ajudar na cicatrização. "Eu não culpo os bandidos. O culpado é o estado, que deixou uma barbaridade como essa acontecer", diz Bia. As vítimas do ataque não receberam amparo algum, nem do estado nem da empresa de ônibus. Nem sequer foram ressarcidas pelas malas que se perderam no incêndio. A modelo, por sorte, tinha um plano de saúde que cobriu parte das despesas, mas não recebeu auxílio nem da agência de modelos onde trabalhava sem carteira assinada. Seu capital era a bela aparência. Por isso, mantinha o peso na casa dos 56 quilos, trazia o cabelo e a pele bem-cuidados e tinha grandes expectativas para o futuro. Agora, só tem um objetivo em mente: "Quero ficar boa, voltar para casa e ter uma vida normal".