Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 17, 2007

Vítima de ônibus incendiado tenta reconstruir sua vida

Uma vida interrompida

Modelo queimada por bandidos passou por dez
cirurgias. "No começo eu não me reconhecia"


Marcelo Bortoloti

Fotos arquivo pessoal e Oscar Cabral
Bia Furtado na semana passada, quando saiu do hospital, e em foto de modelo: a recuperação é lenta e dolorosa



Em dezembro passado, a modelo capixaba Bia Furtado, 30 anos, acordou no meio da noite com barulho de tiros. Estava num ônibus, voltando para São Paulo, depois de passar o Natal com a família no Espírito Santo. O veículo, da viação Itapemirim, tinha passado pelo Rio de Janeiro para trocar de motorista. De sua poltrona, a modelo viu o ônibus parar na pista e um bandido subir para saquear os passageiros. Ao seu lado, uma senhora tentou tranqüilizá-la dizendo que tudo iria acabar bem. Ela estava errada. Um segundo homem entrou com um galão de gasolina nas mãos e espalhou o combustível pelo corredor, molhando quem estava nas primeiras poltronas. Depois riscou um fósforo e viu a chama arder com 28 pessoas lá dentro. O ônibus, com ar-condicionado, tinha as janelas travadas. "Começou a pegar fogo em todo mundo, e me vi desesperada porque não conseguia abrir a janela. A fumaça estava sufocando", diz Bia. Com socos e pontapés, alguns passageiros tentavam em vão quebrar os vidros. É um daqueles momentos em que a vida toda passa pela cabeça. Bia iniciou a carreira ainda criança, quando ia de ônibus da cidadezinha de Muqui, onde morava no sul do Espírito Santo, até a capital, Vitória, fazer um curso de modelo e manequim. Mudou-se para São Paulo, onde conseguiu ser uma das 150 modelos da agência Mega. Acabara de comprar um apartamento novo junto com o namorado, o estilista Roberto Bacellar, e tinha planos de se casar em setembro. Quando saiu daquele ônibus, com 35% do corpo queimado, incluindo rosto, braços e mãos, viu a carreira ser interrompida de forma brutal.

O veículo foi abordado por vinte traficantes armados. Eles estavam em guerra com a polícia. Até hoje, três meses depois, ninguém sabe ao certo o motivo do ataque. O fogo se alastrou em poucos minutos, sem dar chance para nenhuma reação, a não ser o pavor. Um passageiro da última poltrona conseguiu quebrar duas janelas, pelas quais escapou a maioria dos sobreviventes, inclusive a modelo. "Meu corpo começou a melar, e eu pensei: 'Meu Deus, estou derretendo'", diz. Do lado de fora, a polícia havia chegado ao local e trocava tiros com os traficantes. Quem conseguia escapar do incêndio entrava no meio do fogo cruzado. Bia se atirou pela janela e permaneceu no chão, ferida, mas fingindo-se de morta com medo de ser atingida pelos bandidos. Arrastou-se até uma casa, onde dois moradores a socorreram e levaram ao hospital. O resultado do ataque foi deplorável: sete corpos carbonizados e catorze passageiros hospitalizados, quatro deles em estado grave. Dois acabaram morrendo. Bia teve queimaduras de terceiro grau no rosto, nos ombros, nas costas, no braço direito e nas duas mãos. Uma delas ficou com os tendões à mostra. Ao chegar ao hospital, o prognóstico era aterrador: ela podia morrer ou, se sobrevivesse, perder as mãos.

Foram quinze dias no CTI. Quando recobrou a consciência, demorou um pouco a acreditar na barbaridade de que tinha sido vítima. Por uma defesa natural do cérebro, passou mais de uma semana tendo alucinações. Pensava estar num cruzeiro marítimo. Ela só voltou à realidade no meio do tratamento, com a ajuda de psicólogos e da família. O esforço para recompor as partes queimadas do corpo foi árduo. Dez cirurgias no total, as primeiras para remover tecidos mortos, depois para enxertar pele, retirada do couro cabeludo e de outras partes do corpo. "Queimadura é a situação mais grave que o corpo pode suportar", diz o cirurgião plástico Marco Aurélio Pellon, que acompanhou o caso. Ela não sentiu dor na hora do ataque por causa da adrenalina. Dolorosos foram o tratamento de recuperação, principalmente nas sessões de fisioterapia, e as trocas de curativo. Bia pediu que retirassem os espelhos do quarto, não queria se ver. Só começou a se olhar aos poucos, quando os médicos incentivavam: "No começo eu não me reconhecia com aquele rosto todo inchado. Lembrava das minhas fotos e a referência que tinha de mim era essa. Até hoje ainda choro muito".

Do estado em que chegou ao hospital até receber alta, no último sábado, depois de 72 dias internada, a modelo teve um sensível avanço. Ainda caminha com dificuldade e não movimenta a mão direita. Mas as feridas do rosto começam a cicatrizar e ela já consegue falar sobre o que aconteceu, embora com os olhos marejados. O tratamento ainda deve durar dois anos, e nos próximos seis meses ela terá de usar uma máscara no rosto 24 horas por dia para ajudar na cicatrização. "Eu não culpo os bandidos. O culpado é o estado, que deixou uma barbaridade como essa acontecer", diz Bia. As vítimas do ataque não receberam amparo algum, nem do estado nem da empresa de ônibus. Nem sequer foram ressarcidas pelas malas que se perderam no incêndio. A modelo, por sorte, tinha um plano de saúde que cobriu parte das despesas, mas não recebeu auxílio nem da agência de modelos onde trabalhava sem carteira assinada. Seu capital era a bela aparência. Por isso, mantinha o peso na casa dos 56 quilos, trazia o cabelo e a pele bem-cuidados e tinha grandes expectativas para o futuro. Agora, só tem um objetivo em mente: "Quero ficar boa, voltar para casa e ter uma vida normal".


CRIME
21 de março de 2007

Tiro na universidade

Na manhã de 5 de maio de 2003, a estudante de enfermagem Luciana Gonçalves de Novaes hesitou ao entrar no ônibus que a levaria à aula. O Morro do Turano, que fica atrás da Universidade Estácio de Sá, na zona norte do Rio de Janeiro, estava em pé de guerra e os traficantes ameaçavam o comércio da região. Mas, com receio de perder a bolsa de estudos de 50%, não quis faltar às duas provas agendadas para aquele dia. Filha de um motorista e uma merendeira aposentada, Luciana foi a primeira integrante da família Novaes a chegar a um curso superior. Encerrado o primeiro tempo de aula, foi até a cantina e pediu seu lanche habitual dos intervalos: mate e pão de batata. Essa é a última memória que tem antes do momento em que foi ferida por uma bala perdida dentro do campus. O projétil entrou pelo maxilar e atingiu a medula e o bulbo cerebral, deixando Luciana tetraplégica.

Aos 23 anos, ela vive presa à cadeira de rodas e só consegue respirar por, no máximo, cinco minutos sem a ajuda de um aparelho portátil. "A casa e o mundo desabaram sobre a gente", diz o pai da vítima, José Almir de Novaes. Enérgica, Luciana consegue narrar seu drama sem perder o bom-humor e o otimismo. "No início, diziam que eu não iria voltar a falar nem a comer alimentos sólidos", lembra ela, que evitou durante dois anos ver noticiários na TV. Depois de ser baleada, Luciana passou um ano e nove meses internada num hospital e fica feliz por estar agora em casa, um imóvel de dois quartos, com portas largas e pequenas rampas na entrada dos cômodos, na Zona Oeste do Rio. O lar - adaptado às suas necessidades e com um serviço de home care 24 horas - é até agora sua grande conquista na Justiça. Ela move um processo contra a universidade e espera receber também uma indenização por danos morais e estéticos e uma pensão até o fim da vida, mas os dois lados ainda não chegaram a um acordo de valores.

Enquanto a ação se arrasta nos tribunais, Luciana faz sessões de fisioterapia de segunda a segunda. Seis enfermeiras, três fisioterapeutas e uma fonoaudióloga se revezam em sua rotina de tratamentos. Em seu tempo livre, a jovem é peça-chave de uma rede informal formada por vítimas da violência e seus parentes, que relatam seus casos e prestam apoio mútuo. Quando a jovem Priscila Aprígio foi baleada durante um assalto a uma agência do Banco Itaú, em São Paulo, Luciana logo ligou para a família. Ela também fez questão de ir à missa de sétimo dia do menino João Hélio Fernandes, arrastado até a morte por bandidos, no Rio. "Sobrevivi e acredito agora ter a missão de passar a minha experiência. Minha grande tristeza é ver que, assim como o meu, outros casos de bala perdida permanecem impunes", diz. Chama a atenção na decoração do quarto de Luciana a sua adoração pelo Rio, mesmo depois do passou: nas paredes há uma pintura da praia de Ipanema e uma fotografia que mostra a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar, em 360 graus. "Continuo amando a beleza, o sol e o mar da minha cidade."

No meio do tiroteio

Ter a vida estraçalhada pela violência, tentar levar uma rotina normal e não esmorecer ao longo dos anos é um tremendo desafio. A carioca Camila Lima, 20 anos, é exemplo de força de vontade. Em setembro de 1998, seu caminho cruzou com o de bandidos que tinham assaltado uma joalheria e fugiam perseguidos por seguranças pelas ruas de Vila Isabel, bairro da Zona Norte carioca. Vítima de uma bala perdida no confronto, ela ficou tetraplégica. A cena de Camila estirada no chão, reproduzida na primeira página de diversos jornais, chocou o país. Filha única de um engenheiro e de uma funcionária pública aposentada, a menina nunca tinha voltado da escola sem a companhia dos pais. Naquele dia, porém, ia fazer um trabalho com amigas de colégio na casa de uma delas.

A maratona que pratica desde então inclui sessões diárias de fisioterapia e busca por novas técnicas de reabilitação. "Há oito anos vivo 24 horas em função dela: sou a enfermeira, a motorista e ainda faço as vezes de fisioterapeuta e de psicóloga quando é necessário", diz a mãe de Camila, Anna Lúcia Lima. Até agora, os esforços valeram a pena: hoje, a filha, que sonhava ser modelo, já tem de volta o movimento da parte superior do corpo e consegue dar os primeiros passos com a ajuda de um andador.

Num feito raro, Camila conseguiu, em 2005, que o estado do Rio de Janeiro arcasse com um tratamento de medula na Alemanha. A busca por técnicas que possam trazer de volta os movimentos inferiores não parou por aí. Em setembro passado, ela passou por uma cirurgia de implante de células-tronco em Portugal - dessa vez, custeada através de um empréstimo de 35 000 euros feito pelos pais. Se der certo, os resultados serão percebidos no prazo de um ano e meio.

Camila tenta levar a vida como outras meninas da sua idade: namora, tirou carteira de motorista, participou de desfiles beneficentes e não deixou os estudos para trás. Ela cursa Ciências Sociais na PUC carioca e, recentemente, começou a estagiar na Petrobras. Para angariar doações para seus tratamentos e divulgar suas melhoras, ela criou um site onde relata suas experiências. "Com o acidente, precisei mudar meus objetivos de vida e não posso deixar a peteca cair", diz.


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