Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, março 07, 2007

ROBERTO DaMATTA Quem é dono do 'social'

Todo reducionismo é um terrorismo, porque nega a complexidade da ação social humana, com as suas conseqüências imprevistas, advindas da liberdade; e com a sua perene obrigação de, em qualquer caso, intervir. Pois em sociedade (algo bem diferente deste nosso mal politizado “social”) não fazer nada é um modo quase sempre aviltante, como estamos testemunhando, de intervenção.

No mundo humano, tudo, inclusive ficar de braços cruzados, tem sentido.

As ondas do caso João Hélio mostram o que salientei: a nossa incapacidade de relacionar o geral com o particular; de compreender que o social” (aspeado) não se resolve sozinho e que ele tem tantos lados que é mesmo complicado abri-lo, pois não há um modo de isolar um dos seus fatores sem que os outros apareçam.

Eu me explico. Todo crime não só tem componentes “sociais”, mas é, ele próprio, social! Não apenas porque nossa consciência de culpa e nosso sentimento de autocomplacência tenham atingido o nível estratosférico do dos nossos políticos, mas simplesmente porque o social (sem aspas) não pode ser reduzido às suas dimensões utópicas”; ou seja: a certos ideais e valores. Não vou entrar no mérito do pensamento utópico, porque não posso imaginar que alguém seja favorável à miséria, e ao crime. O ideal seria viver numa sociedade equilibrada e, na utopia, sem nenhuma mazela.

Mas o problema é que o social das disciplinas sociais que, com enorme esforço, muitos erros e alguns acertos, estudam as utopias contra o desejo dos utópicos; que examinam a santidade contra a vontade dos religiosos; que denunciam os erros e riscos do mercado, contra o credo dos ideólogos do capitalismo; e que fazem o mesmo contra o desejo do realismo policialesco que, no fundo, são tão utópicos quanto os outros; engloba tudo, fala de tudo, diz respeito a todos os costumes, valores, leis, pensamentos e gestos.

Neste sentido, dizer que a criminalidade tem uma causa “social” é afirmar o óbvio. Não é preciso ir tão longe para assumir que o Brasil é um país injusto; não é preciso inventar um “social” qualificado como culpado, do qual seríamos os donos, para afirmar que todos os problemas sociais são complicados. Mas seria o complicado insolúvel? Teria ele o dom de racionalizar nosso imobilismo político e moral? Os menores cometem crimes hediondos e esses crimes se avolumam. Seria reacionário sugerir que se discuta a mudança da menoridade para propósitos criminais, com relação a certos crimes, sobretudo se a sociedade vive num clima de plena e imoral impunidade? Vamos mais uma vez entrar no cabo-de-guerra imbecil, tipo: quem é favorável à mudança da idade da criminalidade penal é adepto da visão repressora segundo a qual o social se resolve com polícia; nós, os escolhidos, os esclarecidos e os revolucionários do bem, somos adeptos da transformação do “social”.

Quando foi que o uso da polícia contra o crime deixou de ser também social? A transformação da polícia e do sistema carcerário não estaria ligada a essas mudanças? Aliás, reacionário é assumir que todo crime tem como centro o tal “social” que seria irredutível e indecifrável. Sejamos inteligentes: o centro do atraso brasileiro não estaria justamente nesse argumento que o “social” pertence a pessoas boas, sempre prontas a detonar um “Você sabe com quem está falando?”, que não admite desempacotá-lo? Como foi que acabamos com a inflação? Se fôssemos nos guiar pelos argumentos do “social” impressos no estruturalismo Cepalino, estaríamos até hoje sendo comidos pelo “dragão inflacionário” lido como uma praga insanável: bíblica no seu elo essencial com o Brasil.

Como fazer se, pelo diagnóstico reducionista, o doente é incurável? A resposta está na educação. Mas a “educação” estaria livre de escolhas, arbitrariedades e limites? Estaria ela liberta do bom senso que manda rever a lei quando se desconfia de que há algo de errado com ela? Quem foi que disse que 16 anos para a responsabilidade criminal não é educativo? Se o julgamento do que é politicamente adequado ao Brasil pode ser realizado numa consciência de 16 anos, capaz de discernir sutilezas como “aquele é reacionário”, “esse é progressista”, “aquele é populista”, “este foi o autor da herança maldita”, “este vai nos redimir”, etc... por que transformar em dogma a discussão da diminuição da menoridade criminal? O que quero dizer é o seguinte: se a discussão da onda de criminalidade que vivemos se reduzir à burrice de um cabo-de-guerra entre os bons, que reduzem tudo à educação e ao “social”; e aos maus, que enxergam a questão a partir do mundo real: o mundo da dor e dos menores e maiores assassinos, e sabem que todo ato criminoso é também um caso de polícia, então estaremos fazendo como as aranhas do velho Machado de Assis: querendo acabar com a fraude eleitoral mudando a forma das urnas. No caso, usando o “social” contra nossa própria sociedade, numa prova cabal que queremos tudo, menos mudar.

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