Quatro meses se passaram e só agora me animo a contar um episódio insólito que ocorreu quando da implantação do sistema de tolerância zero antiterror nos aeroportos da França, idêntico a este que começa aqui em 1º de abril. Justamente na semana de inauguração do novo esquema de controle, eu voltava de um período como professor visitante da Universidade de Paris. No aeroporto, a agitação era grande e cartazes confusos por toda parte anunciavam enormes listas de restrições. Peguei uma fila e minha mulher, outra. Enquanto esperava, vi-a tendo de esvaziar o conteúdo da sua bolsa, item por item, numa operação enfadonha e inacreditável. Coloquei minhas duas bagagens - maleta de computador e sacola - na esteira do aparelho de detecção.
Passado o primeiro volume, o jovem fiscal me inquiriu: “Este computador é seu?” Diante da confirmação, apontou para sua tela, mostrou um perfil de revólver e afirmou, frio como gelo: “O senhor está carregando uma arma dentro do laptop!” Perplexo, coração disparado, ouvi dele: “Deixou seu computador com alguém? Tem filhos?” Respondi não à primeira questão, embasbaquei-me com a segunda. A inquisição seguiu, insuportável. Até que o rapaz apertou uma tecla de seu monitor, a imagem da maldita arma desapareceu e ele afirmou com desdém: “Não era nada, desapareceu 20 segundos após, conforme a regra; o sistema de vez em quando insere uma imagem falsa, era só um teste para checar minha atenção.” Atônito, ia seguir em frente quando fui alertado para aguardar a última maleta. Feita a inspeção, o funcionário voltou à acusação: “O senhor tem líquidos na outra bagagem!” Lembrei-me de minha água mineral e afirmei: “É só uma garrafinha começada, para matar a sede.” Iniciava-se mais um diálogo kafko-borgiano. Ele dizia: “Mas é líquido.” E eu repetia: “É água.” Alcancei o vasilhame. Ele afastou-se, temeroso, e o diálogo se repetiu. Ele: “É liquido.” Eu: “É água.” Tentando romper o impasse, abri rapidamente a garrafa e bebi um gole, exclamando: “É água!” O fiscal, não programado para uma ação fora do script, e agora perplexo, olhou-me com estranheza e definiu: “Está bem, pode passar.”
Entrei, atordoado, no embarque. Um cardíaco poderia ter tido um enfarte. Não é muito diferente de receber de um bandido um telefonema de falso seqüestro. Mas não se tratava de um bandido, era um agente do Estado, a serviço da alegada segurança de vôo. Enquanto eu caminhava para o avião, ia encontrando as inúmeras lojas, os restaurantes e lanchonetes de sempre, servidos por grande quantidade de funcionários de várias etnias que entram e saem todos os dias da “zona protegida”. Fiquei pensando se algum terrorista minimamente competente iria correr o risco de entrar com um revólver ou explosivo na valise de mão, podendo contar com mil expedientes para recebê-lo dentro do saguão. Em suma, fui refletindo sobre mais essa estupidez e truculência que nosso “sistema global” comete ao encarecer brutalmente seus custos, atrasar vôos e infernizar a vida dos passageiros. Os resultados são pífios em relação ao combate a um terrorismo que cresce motivado - entre outras coisas - pela visão e pela ação intolerante desse próprio “sistema”.
Já no túnel de embarque, peguei o Le Monde do dia. Manchete de primeira página anunciava que milhões de câmaras de TV monitoram os gestos cotidianos dos britânicos. Uma comissão local afirmava que a Inglaterra se está transformando numa “sociedade sob suspeita”. Somente nas ruas, nas estradas, nos trens, nos ônibus e nos metrôs, são 4,2 milhões câmaras, uma para cada 14 habitantes. Estatísticas mostram que um cidadão londrino pode ser filmado até 300 vezes por dia.
Pelo mundo afora, redes eletrônicas analisam continuamente hábitos, movimentos, compras por cartão, uso de internet, numa contínua busca de indícios. A sociedade da informação transformou cada um de nós, de vítimas que somos, em eternos suspeitos. O que não impede a escalada de atos terroristas e outros brutais, como o assassinato do jovem brasileiro, a tiros, pela polícia londrina. Muito menos evita milhões de invasões eletrônicas nas contas bancárias e nos cartões de crédito dos cidadãos. Ou, ainda, que um paulistano seja abatido a tiros porque se recusou a retirar o cinto de sua calça numa porta eletrônica de uma agência bancária, que apitava furiosamente por defeito do “sistema”. Erros são inevitáveis, tentam justificar-se os seus “controladores”.
Já estão em implantação máquinas que sopram corpos e roupas, buscando vestígios de drogas ou explosivos. Anunciam-se para daqui a dez anos reconhecimentos faciais digitais e holográficos; e a implantação de chips pele abaixo dos cidadãos, aí, sim, definitivamente monitorados - tal qual prisioneiros - 24 horas por dia pelos sistemas privados e públicos.
As empresas de cartões de crédito e os bancos afirmam que precisam desses aparatos para nos proteger contra roubos, mas seus lucros é que são protegidos, já que eles não se esquecem de nos debitar todos os meses uma taxa de seguro. A polícia diz que precisa dos controles para nos defender do crime, mas as evidências não lhe dão razão. Finalmente, os serviços de segurança garantem que, com essas medidas absurdas, estão evitando ataques terroristas; também não é o que se vê, dado que esses atos truculentos primam pela surpresa e originalidade.
Enquanto isso, parte importante dos nossos direitos e preceitos democráticos, duramente conquistados, vai para a lata do lixo. É difícil imaginar alternativas, mas essa obsessão por tolerância zero é mais um indício grave de que estamos seguindo um mau caminho. Além de impossível e absurda, ela significa intolerância global. E, portanto, ainda mais violência.