Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 17, 2007

Generosidade criminosa Mauro Chaves


A população paulistana já demonstrou - pela rápida mobilização a que se dispõe em ajuda a vítimas de enchentes, incêndios, grandes acidentes, no atendimento a campanhas filantrópicas de todo gênero (do tipo Criança Esperança), no auxílio a entidades de beneficência (às sérias, às nem tanto e até aos gigolôs de mendigo) - que é uma das mais generosas do mundo. Certamente poucas cidades dão condições, como São Paulo, de pessoas viverem exclusivamente de esmolas, mesmo não sendo esta metrópole das mais baratas para se viver - antes muito pelo contrário.

Talvez o intenso grau de imigração tenha contribuído para a formação de redes de solidariedade entre as colônias - a ajuda ao patrício vindo de longe - que acabaram se disseminando por uma capilaridade de benemerência que tem perpassado todo o povo de São Paulo. Essa é uma das maiores qualidades desta cidade e não devemos perdê-la. No entanto, nos tempos em que vivemos, desta exacerbada falta (ou inversão) de valores, o que é qualidade se está tornando grave defeito, o que era para fazer bem se está tornando a sustentação de uma abjeta impunidade, tendo por vítimas maiores os seres mais preciosos de nossa espécie, pela potencialidade que carregam. Refiro-me às crianças, é claro.

Crianças são vergonhosamente exploradas nas ruas paulistanas por seus pais-gigolôs, que não fazem cerimônia alguma de sua prática criminosa. Às vezes se percebem mães sentadas nos gramados das ilhas de avenidas - como a Sumaré - batendo animado papo com as amigas, como se estivessem na praia ou num clube, enquanto as crianças se arriscam entre os carros para pedir dinheiro aos motoristas e passageiros. Na Alameda Santos, quase esquina com a Rua Augusta, em frente ao restaurante Galeto’s, a moça grávida, sentada na calçada, comanda a ação de suas quatro lindas crianças, de 5 a 10 anos (as menores, seminuas). Ela vem de Belo Horizonte, hospeda-se num hotel na região central de São Paulo e vai para aquele ponto fazer seu expediente, diariamente. Na Rua Estados Unidos, quase esquina com a Rebouças, outra mãe carrega o filho que tem jeito de deficiente, corpo todo largado para trás e olhos meio revirados. Mas ao chegar ao fim de seu expediente - o dela é às 18 horas -, com sua sacolinha de dinheiro arrecadado, a mãe põe o filho no chão e este caminha perfeitamente normal, sorridente, conversando animado e ajudando-a a carregar os pequenos pertences utilizados no trabalho de pedir esmolas, tais como garrafa térmica e isopor com comida.

Curioso é que tantos defensores da maravilha de modernidade que é nosso Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Lei n 8.069, de 13 de julho de 1990 -, tantos que chegam à beira do ataque de nervos à simples menção à redução da maioridade penal, tornando-se apopléticos ao sentir o risco de o País sair do fechadíssimo clube dos inimputáveis até os 18 aninhos (cujos sócios exclusivos são Guiné, Colômbia, Equador, Venezuela e Brasil), parecem não ligar a mínima para a atuação dos pais-gigolôs. O ECA estabelece em seu artigo 5 que nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de exploração; e em seu artigo 232, no capítulo dos crimes, determina: “Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou constrangimento: Pena - detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.”

Haverá maior vexame ou constrangimento a que se submeta uma criança do que sua colocação na plena mendicância? Por que, então, não se lê uma linha ou se ouve uma palavra dos ecáfilos (amantes do ECA) sobre o opróbrio da exploração dos filhos nas ruas? Por que não cobram das autoridades uma ação enérgica contra essa paternidade safada, acintosa, de pessoas que parecem ter visto em suas cidades de origem alguma propaganda mais ou menos assim: “Vá para São Paulo pedir esmolas com seus filhos e pague as passagens e hospedagens em suaves prestações, parceladas no cartão”?

Indague-se agora: o que se passa com pessoas decentes e inteligentes que sabem que aquelas crianças estão sendo exploradas - pois enxergam seus exploradores a distância bem próxima -, que sabem do malefício que lhes estão fazendo, estimulando, com esmolas, a que permaneçam nas ruas, na degradante condição de esmoleres, em lugar de freqüentarem as salas de aula, para adquirirem condições de enfrentar a luta pela sobrevivência de maneira mais digna?

O que se passa com pessoas decentes e inteligentes que estão a premiar, com suas moedas, uma das mais sórdidas atitudes dos seres humanos, que é a de tirar proveito, de maneira semelhante à escravista, de sua própria prole? E com as que colaboram para que inescrupulosos procriadores sustentem o próprio ócio roubando o futuro de seus descendentes? Passa-se uma coisa só: culpa. Os politicamente corretos têm martelado na “nossa culpa, nossa máxima culpa”, por todas as misérias do País, da fome à violência, da ignorância às atrocidades, da falta de oportunidades à descrença nas autoridades e na capacidade de o Estado oferecer um mínimo de segurança e justiça aos cidadãos.

Então, nesse barril entornado de culpa em que se transformou a classe média paulistana, com sua bondosa consciência atochada de “recriminações sociais” dos autoproclamados porta-vozes dos desvalidos, surge a pequenina válvula pseudo-aliviadora das esmolas nas esquinas, nos faróis, às portas dos restaurantes - “meus filhos comendo bem no restaurante e esses pobrezinhos sem nada para comer, que horror” - que acaba exacerbando a generosidade, tornando-a criminosa. Criminosa, sim, porque são moedas que compram impunidade e pagam destruição de futuro.


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