Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, março 19, 2007

Pena máxima- Denis Lerrer Rosenfield



artigo
O Estado de S. Paulo
19/3/2007

Um país é mais ou menos civilizado pelas formas de criminalidade que povoam o seu dia-a-dia. Querer deslocar a questão para a discussão sobre a pena máxima, como se ela fosse o critério civilizatório, significa confundir, de uma forma elementar, a causa com o efeito. Quando um país vive cotidianamente a barbárie, é porque há algo doente em seu seio. Os olhos já não vêem o que a alma não pode suportar, salvo nos momentos de profunda indignação. A barbárie não consiste na ação do Estado ao retirar do convívio humano indivíduos que não devem - nem podem - nele permanecer, mas na simples existência de atos de violência inaudita que permanecem sem punição. A justificativa de que os direitos humanos são, assim, preservados reside numa grave distorção dos fatos, pois as vítimas, os mortos e os seus familiares e amigos são colocados na condição de não-humanos, enquanto os criminosos são objeto de explicações compreensivas. As "boas almas" demonstram uma profunda má-fé.
A pena máxima, seja sob a forma da pena de morte ou de prisão perpétua, é uma medida que pode ser adotada pelo Estado visando a retirar de circulação indivíduos radicalmente inaptos para a vida normal. Há pessoas cujos atos, na barbárie extrema, revelam uma natureza que não pode ser regenerada. Nenhuma medida educativa pode ter neles algum impacto definitivo, salvo na máscara da boa conduta para violências futuras. São pessoas que têm uma propensão - freqüentemente calculada - para atos maldosos, para atos de eliminação e tortura do próximo, que não são passíveis de reeducação. A História exibe exemplos deste tipo à profusão - nazistas e stalinistas sendo casos particularmente notórios. E a sociedade brasileira convive com esses tipos de indivíduos que entram e saem da prisão para executarem os mesmos atos violentos. Surge uma inadequação total entre medidas ditas de caráter reeducativo e atos criminosos, que não se encaixam, por sua natureza, nessa forma de intervenção dita progressista, mas, na verdade, regressiva.
Pretender igualar a ação do Estado a atos criminosos - como se fossem ambos da mesma espécie, igualmente violentos e formas de vingança - equivale a fazer uma confusão elementar entre a natureza do Estado e atos que procuram romper com os laços de sociabilidade. A instituição estatal tem como função primeira a segurança pública, a conservação da vida, dos bens e das propriedades dos seus cidadãos.
Ela se dá os meios para a realização de sua finalidade, dotando-se de corpos policiais e de uma estrutura jurídica. Tratase, simplesmente, da força do Estado no exercício de suas funções. Se não houvesse Estado, as transgressões e os crimes mais ferozes estariam simplesmente "liberados". Por sua vez, o crime consiste na negação da ordem estatal e no rompimento dos nexos sociais. Se o Estado não agisse, estaria anuindo com a violência, dando-lhe livre curso. Se reage, é porque cumpre responsavelmente suas funções. Supor, portanto, que a ação estatal é vingativa significa desconhecer a natureza mesma dos laços políticos de sociabilidade. Os que sustentam tal posição se colocam do lado da violência, embora digam pretender coibi-la. Fazem o jogo da criminalidade.
Repressão não é nome feio. Significa a ação coercitiva do Estado na preservação da ordem pública. A questão reside num perverso jogo de vocabulário. Considerando a ressonância valorativamente negativa da palavra repressão entre nós, por estar associada à perseguição de opositores durante o regime militar, os defensores de tais posições procuram levar o Estado à inação, como se toda tarefa coercitiva fosse repressiva do ponto de vista político. Desapareceu, por exemplo, do vocabulário cotidiano a expressão coerção estatal, ou mesmo defesa da ordem pública, da paz pública, em proveito de uma crítica preliminar, a priori, da repressão (política) estatal.
Aparece, então, uma estranha compaixão pelos criminosos em nome de uma luta contra a repressão. Os termos da questão são tão mal colocados que os seus defensores nem se atrevem a submeter à população um referendo sobre a pena máxima, pois sabem que perderiam. E o fazem jogando com as palavras e abusando da boafé alheia. Se perguntassem a qualquer pessoa se deseja ou não a paz pública, se está de acordo com a ação coercitiva do Estado em proveito de todos, teriam a resposta que sua ideologia procura velar.
Pobre não é criminoso. Rico tampouco. Criminosos são os que perturbam a paz pública, indivíduos que não respeitam a lei nem o próximo. Jornais mostram pessoas de baixa extração social que devolvem dinheiro achado na rua, pessoas que possuem o sentido do respeito da


Há pessoas cujos atos revelam uma natureza que não pode ser regenerada


propriedade dos outros. Pessoas que poderiam mudar a sua vida se guardassem o que encontraram. Significa um profundo desrespeito a essas pessoas considerá-las potencialmente criminosas. Pessoas pobres são muitas vezes mais responsáveis por suas dívidas que pessoas mais aquinhoadas socialmente. Isto não quer dizer, evidentemente, que o Estado não deva melhorar as condições sociais dos mais carentes, mediante iniciativas nas áreas da educação, da saúde e, sobretudo, do emprego e da aquisição da propriedade. Pessoas com a estima adquirida pelo trabalho e por bens próprios, pelo atendimento dos seus, são pessoas capazes de melhor resistir aos falsos encantos do crime organizado. Não se pode, contudo, confundir as duas esferas, a de uma sociedade que se desenvolve e a de um Estado que cumpre suas funções coercitivas da segurança pública.
Países ricos que não têm os problemas sociais do Brasil nem por isso menosprezam as funções do Estado. Ao contrário, fortalecem-nas, pois sabem que a impunidade não pode ser tolerada. Por suas portas, a violência entra e se avoluma, podendo se tornar incontrolável. ?

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