“Quando, durante a campanha eleitoral e ao longo da crise governamental, se ouvia dizer que o problema fundamental e preliminar que as forças políticas deviam resolver era o de assegurar a governabilidade do país, uma coisa muito terra-a-terra devia ser entendida: a possibilidade de formar um governo.”
“Por outro lado, quando cientistas políticos falam de governabilidade, entendem uma coisa inteiramente diferente. Eles pretendem, antes de mais nada, pôr o problema da possibilidade, não de formar um governo, mas de governar uma sociedade cada vez mais complexa, territorialmente muito vasta, com uma população socialmente articulada, economicamente diferenciada, politicamente sempre mais exigente, inclusive em relação a melhores e mais estáveis formações de governo.”
“Nos países não apenas capazes de formar um governo, mas efetivamente governados, existe uma relação entre grupos e programas em torno de certas questões de fundo... (Mas) num sistema de partidos complicados, em que por ‘governabilidade’ se entende até a difícil operação de formar um governo, não se fazem alianças com base em opções de fundo (governabilidade em sentido forte): as opções são feitas com base em possíveis alianças, de tal forma que por vezes tornam as opções de fundo impossíveis.”
Os três parágrafos acima referem-se... à Itália. Foram extraídos de um texto de Norberto Bobbio (É preciso governar) escrito em 1979 e que retém surpreendente atualidade e relevância para esta nossa época de economia global e política doméstica.
A inexorável - para um país que quer desenvolver-se - integração à economia global não é incompatível com diferentes “modelos sociais”, tal como configurados por políticas nacionalmente decididas. O Instituto Brueghel, por exemplo, identifica não um, mas quatro “modelos sociais europeus” (anglo-saxônico, nórdico, continental e mediterrâneo), cada um com sua história e suas características. Os EUA têm outro “modelo”; o Japão, outro. Todos sob contínuo debate político doméstico, ali onde as questões fundamentais são, e continuarão a ser, ao fim e ao cabo, decididas. Mas estas decisões são afetadas por percepções sobre a situação do País na economia global e sobre sua competitividade internacional no século 21.
Um século que, diga-se de passagem, começou com cerca de uma década de antecedência, com o colapso do império soviético, a rápida emergência da China e da Índia e a extraordinária elevação de produtividade e eficiência propiciada pela generalizada aplicação da revolução tecnológica nas áreas de informática e telecomunicações.
A combinação destes fenômenos levou a dois fatos de importância histórica. Primeiro, uma revolução nas expectativas à medida que centenas de milhões de pessoas, nas mais variadas partes do globo, passaram a ter acesso, em tempo real, a informações sobre estilos de vida, diferenças de renda e riqueza, padrões de consumo em relação aos quais situar sua posição relativa - e suas possibilidades de trabalho. Em segundo lugar, porque, como notou Greenspan em entrevista recente, “estamos caminhando para dobrar, a longo prazo, o tamanho da força de trabalho global envolvida em mercados internacionais competitivos”. Um choque de oferta de proporções historicamente inéditas. Afinal, em apenas 50 anos (1950-2000) passamos de 2,5 bilhões a 6 bilhões de pessoas. E seremos cerca de 7,1 bilhões em 2015. A imensa maioria com expectativas quanto a seus futuros padrões relativos de renda e de consumo - inclusive de bens públicos.
O efeito combinado destas transformações estruturais em tão curto período de tempo nos remete a uma das questões de fundo de que falava Bobbio. A esmagadora maioria dos Estados nacionais, inclusive alguns dos países hoje desenvolvidos, simplesmente não tem condições de arcar com os custos de satisfazer as crescentes expectativas que são continuamente postas sobre suas capacidades de resposta a legítimas demandas sociais. Em outras palavras, os níveis e a qualidade dos gastos com educação, saúde, transporte e muitos outros serviços que as pessoas, que tinham os modelos europeus como referência, esperavam, por mais de meio século, que fossem providas por seus respectivos Estados estão hoje, na maioria dos países, ou fora das possibilidades orçamentárias de um governo ou fora dos limites que a população - da parte que paga tributos - aceita como necessário e razoável nível de impostos para a provisão de serviços públicos. A tentativa de aumentar a carga tributária de forma continuada afeta negativamente o investimento privado, os incentivos ao trabalho, a poupança e o crescimento futuro.
A entrada dos asiáticos na economia global vem tornando mais claro algo que a discussão dos vários “modelos sociais”, europeus ou não, já vinha evidenciando: é preciso mudar, gradualmente que seja, o contrato explícito ou implícito entre governos e a população que constitui a base para a legitimidade política dos governos. E a direção desta mudança parece clara: na direção, como vêm mostrando os asiáticos e os mais bem-sucedidos dentre os desenvolvidos (embora com outro ponto de partida), de oferecer novas e maiores oportunidades de escolha e desenvolvimento de capacidades individuais pela educação de qualidade, como meio de liberar esta imensa energia e a criatividade de que o ser humano é capaz, e de lidar com exageradas expectativas sobre as responsabilidades do Estado de tentar de tudo e a todos prover.
O presidente Lula deve anunciar nos próximos dias que, finalmente, conseguiu formar um governo para seu segundo mandato. A nossa integração com a economia global seguirá o seu curso, com seus desafios e oportunidades. Mas o governo - e a oposição - tem enormes responsabilidades de, no interesse público, não deixar de procurar elevar a qualidade do debate doméstico (político e econômico) sobre as questões de fundo de que depende nosso futuro na economia global.